Mais de 300.000 saíram ontem às ruas em Lisboa, no Porto e em outras cidades do país. Elas transformaram o protesto da «geração à rasca» num conjunto de demonstrações que envolveu pessoas de todas as idades e de muitas origens, unidas, de uma forma estranha apenas na aparência, justamente pela diversidade dos rostos, das reivindicações, dos gestos e das palavras de ordem.
Pessoas de idades muito diferentes porque as que estão entre os 18 e os 35, das mais directamente afectadas pela precariedade do trabalho, pela falta de dinheiro e pela ausência de perspectivas, têm pais, irmãos e amigos que se preocupam com elas e quiseram partilhar a expressão pública das suas angústias e da sua revolta. Mas também porque existem muitos mais, de outras gerações, a viver no limite, temendo diariamente pelo futuro e com vontade, mas até agora sem oportunidade, de irem para a rua gritar o desespero. Desesperados ou solidários, novos e velhos, com mais ou menos estudos, aspecto casual chic ou bem humilde, com ou sem conta no Facebook. As manifestações foram, por isso, uma importante expressão de solidariedade entre sectores sociais muito diversos, pessoas que no dia-a-dia se cruzavam sem se olharem, como opiniões desiguais, com ou sem partido, mas unidas agora por um complexo dramático de carências, de inquietações e de reivindicações que lhes são comuns.
A organização, semi-espontânea, foi naturalmente caótica. Não existiam palavras de ordem predefinidas, cartazes concebidos de acordo com um modelo padronizado, cânticos combinados, inclusões pensadas por antecipação, serviço de segurança pronto a disciplinar o desfile. Toda a gente entrava e saía a seu bel-prazer. Dizia ou escrevia o que lhe apetecia exprimir. Uma única norma não-escrita: as bandeiras partidárias não deveriam aparecer. Esta característica é particularmente importante e será sempre invocada, em nome do sistema que sustenta a actual maioria, pelos mesmos detractores que atacariam os protestos se, ao contrário, estes tivessem um enquadramento profissional e partidário. Mas é também um sinal intensamente positivo, uma vez que significa a expressão do princípio segundo o qual a gestão da democracia já não pode ser confinada à mera intervenção dos partidos, ainda que a não deva excluir. O comportamento pacífico e tolerante dos manifestantes deverá de idêntica forma ser uma lição para as forças partidárias. Sobretudo para aquelas que se fecham numa lógica autista, mais preocupada com a conservação do poder e a gestão dos seus próprios erros do que com o pulsar da vida das pessoas comuns.
O mais importante é, no entanto, o sentido global tomado por todo este movimento. Ele não configura apenas a expressão visível de um descontentamento crescente e inevitável, dada a degradação acelerada das condições de vida e das expectativas de futuro de milhões de pessoas que o Estado social está a deixar sem protecção. Se assim fosse, seria igualmente importante mas em pouco se diferenciaria do protesto sindical tradicional, que o sistema já incorpora, por vezes, como um ritual sem grandes consequências. Inesperado e inovador, define-se sobretudo pelo facto de corresponder a um movimento alargado de intervenção cidadã e de esperança. De intervenção, como corrente de opinião, afirmando-se junto de quem tem, dentro ou fora das velhas fronteiras nacionais, o dever de governar e a autoridade para desenvolver políticas em nome dos povos. De esperança na possibilidade de modificar as vias do destino marcado, pontuado pela desigualdade social, que nestes tempos mais próximos tem sido apontado como o único trilho que é possível percorrer.
Os tempos estão bem difíceis para a maior parte dos que se dispuseram ontem a ir para a rua protestar. Mas não podemos deixar de ter em conta, como um factor simbólico de peso, os rostos de alívio, e de breve alegria, com os quais muitas dessas pessoas debandaram no final a caminho das suas casas. Sabendo que na manhã seguinte acordariam de novo com as preocupações habituais. Medir até as despesas mais essenciais, não pensar no futuro, fazer de conta, sobreviver. Nesta tarde de sábado, no entanto, sentiram-se menos sozinhas e vislumbraram a fronteira do possível.
Adenda – Entretanto, bloggers próximos do PS que são pessoas cultas e qualificadas de quem – independentemente de uma discordância legítima a propósito dos objectivos, dos contornos e até da oportunidade deste movimento – se esperaria uma reflexão aberta sobre um fenómeno político novo e poderoso, resolveram calar o assunto ou deixar cair frases de uma arrogância chocante e inexplicável. Veja-se este exemplo, que poderia multiplicar. Pior do que não saber, sempre ouvi dizer e costumo repetir, é não querer saber (existe uma outra versão: «o pior cego…»).