Segundo o seu autor, este livro é o testemunho de um fracasso. Mas será melhor não o tomarmos demasiado a sério. Acontece apenas que Anatomia de um instante foi concebido como um romance e acabou por não o poder ser. Javier Cercas percebeu-o de imediato quando começou a recolher dados sobre o acontecimento que resolvera ficcionar e se viu confrontado com um volume surpreendente de informação. Percebendo que nessas condições seria um enorme desperdício abordar o tema na perspectiva da pura construção romanesca, decidiu reorientá-lo para o campo do ensaio. E assim apareceu esta aliciante história do dia 23 de Fevereiro de 1981, quando, como parte de uma conjura militar contra a «transição democrática», um destacamento da Guardia Civil espanhola, comandado pelo teatral tenente-coronel Tejero Molina, ocupou pelas armas o Congresso dos Deputados. Sequestrando-os a todos, bem como ao executivo, que ali se encontrava presente para a tomada de posse de Leopoldo Calvo Sotelo, o sucessor de Adolfo Suárez na presidência do governo. Gravado pelas câmaras da TVE, propagado de imediato pelos telejornais do mundo inteiro, o drama impôs-se por si mesmo, revelando, na intervenção dos actores principais, as dificuldades e os paradoxos com os quais convivia na altura a jovem democracia espanhola.
No centro do trabalho de reconstituição de Cercas encontra-se uma sucessão de olhares sobre o percurso pessoal e o comportamento manifestado durante os acontecimentos das cinco figuras que considera terem sido os seus intervenientes capitais, jogando ali o seu destino político, um lugar na história da Espanha contemporânea, e provavelmente a própria vida. O velho general Gutiérrez Mellado, ministro da Defesa, antigo franquista olhado pelos sublevados como um traidor, que resistiu com coragem e dignidade às ordens de Molina. Santiago Carrillo, o secretário-geral do PCE, como tal um alvo natural dos militares golpistas, que assumiu um papel muito importante ao resistir também às ordens dos golpistas enquanto continuava, imperturbável, a fumar o seu cigarro. O general Alfonso Armada, «golpista moderado», homem ambicioso mas não muito corajoso, olhado como crucial na preparação do golpe mas também no seu rápido desmantelamento. Já a pessoa do rei, apesar de fisicamente ausente do drama vivido nas Cortes, surge como figura omnipresente, fundamental no controlo das movimentações dos golpistas mais radicais e depois na derrota definitiva do seu movimento. O personagem central de todo o livro é no entanto o então demissionário Presidente do Governo, Adolfo Suárez, que Cercas compara – retomado a analogia produzida na época por um jornalista do El País – ao general De la Rovere, o personagem de um antigo filme de Roberto Rossellini. Este era um espertalhão oportunista que se fizera passar por chefe da resistência italiana aos nazis mas acabou por assumir como seu esse papel inventado, acabando fuzilado. Também Suárez, antiga figura de proa da Falange espanhola, arrivista bem-parecido conhecido desde a juventude por um carácter vacilante e oportunista, se convertera à democracia ao ponto de, naquelas difíceis circunstâncias, assumir uma atitude heróica e de elevado risco para a defender.
Numa Espanha colocada na encruzilhada e sob o espectro ameaçador de uma nova guerra civil, o destino cruzado destes cinco homens constitui o objecto nuclear desta obra esclarecedora e envolvente de Javier Cercas. Empenhado em narrar o 23 de Fevereiro como se este fosse uma pequena história, o episódio fugaz de um drama em tom hiper-realista, mas, ao mesmo tempo, como se fosse também «uma das histórias decisivas dos últimos setenta anos da História de Espanha». E foi-o, de facto.
Javier Cercas, Anatomia de um instante. D. Quixote. Trad. de João Pedro George. 456 págs. Publicado na revista LER de Abril de 2011.