originalmente publicado em heterodoxias|21
O governo soviético da década de 1920 foi o primeiro da História a deter um poder de tal forma pleno e colossal que lhe permitiu conceber de raiz redes de grandes bairros e até cidades inteiras, determinando rigorosamente o número, a dimensão e o desenho dos edifícios e das ruas, bem como a taxa de ocupação em cada área ou estrutura. Podia também escolher sem constrangimentos onde construir, como projectar o crescimento, como articular os novos espaços dentro de um equilíbrio idealizado entre a cidade e o campo, chegando a conceber e tipificar o aspecto, a exacta localização e mesmo o pormenorizado funcionamento das fábricas, dos escritórios, das escolas, dos hospitais, dos armazéns e dos edifícios destinados à habitação. O planeamento urbano num Estado todo ele planificado – que foi aquilo em que a Rússia soviética se transformou a partir de 1928 com a entrada em funcionamento do 1º plano quinquenal – não era uma ocupação menor; tratava-se, de facto, de organizar em larga escala e a partir da base, num esforço de design macro-comunitário, todo um universo que se pretendia radicalmente novo e profundamente dinâmico. Diante de tal projecto, como não compreender o entusiasmo dos quadros políticos, engenheiros, arquitectos, economistas ou geógrafos a quem foi atribuída essa tarefa gigantesca?
A planificação urbana, associada ao design do futuro, requeria entretanto a disseminação de uma mentalidade e de um esforço da imaginação estreitamente ligados à ficção científica e à utopia. Se este padrão de tarefas é já de si exaltante, num escala forçosamente menor, em sociedades não-revolucionárias, durante os anos épicos da Revolução Russa arquitectos e urbanistas puderam dar-se ao luxo de repensar uma nação inteira, fazendo encaixar estruturas e anti-estruturas em planos económicos ávidos e que se exigiam ultra-rápidos, projectando os ambientes dentro dos quais se deveria desenvolver aquilo que, sem a sombra da dúvida, se pensava vir a ser uma humanidade nova e socialista. A diferença em relação ao modelo tradicional da ficção científica ou da especulação artística era, todavia, imposta por um conjunto de circunstâncias: de um lado limitações materiais e constrangimentos políticos impostos pela linha bolchevique, do outro a necessidade de trabalhar para pessoas reais e tendo em vista um futuro iminente. Todavia, durante alguns anos de grande liberdade criadora a contradição não parecia conter qualquer drama.
Assim, por algum tempo, antes do recuo político imposto em meados da década de 1930, na Rússia Soviética o tratamento do espaço no seu relacionamento com a privacidade e a vida comunitária intersectou continuamente os grandes temas da especulação utópica libertos pelas possibilidades criadores projectadas pela Revolução de 1917 considerada na sua fase épica, ainda aberta à ousadia e à possibilidade de materializar o imaginável. Os edifícios fantásticos da arquitectura construtivista soviética projectada por Vladimir Tatlin, por El Lissitzky ou pelos irmãos Leonid, Victor e Alexander Vesnine, tal como os programas «desurbanistas» de Moisei Ginzburg, foram projectados dentro deste conceito simultaneamente revolucionário e utilitário que durou poucos anos. Em breve, também neste domínio, o conformismo e a imposição do modelo único iriam derrotar o ímpeto criativo que nascera associado à ilusão da construção ultra-rápida e sem barreiras de um mundo radicalmente novo. A utopia morreu e foi enterrada sob as fundações dos edifícios normalizados e das cidades poluídas, sem rasgo e em tons de cinza.
Leitura: Richard Stites (1989), Utopian Vision and Experimental Life in the Russian Revolution. Oxford: Oxford University Press.