Feminismos em Portugal

feminismos

Uma ideia disseminada considera que o percurso dos feminismos, ou pelo menos o da sua presença visível e com impacto público, é em Portugal relativamente recente, circunscrito às duas últimas décadas do regime democrático. Feminismos – Percursos e desafios, um livro de Manuela Tavares publicado há poucos meses, vem provar o equívoco desse juízo injusto e apressado, mostrando, precisamente em sentido contrário, que o rasto dos movimentos promotores dos direitos das mulheres é afinal razoavelmente dilatado e tem uma agenda própria. Duas das razões que determinaram esse erro de perspectiva são anotadas logo no início da obra: de um lado, a possante influência do regime autoritário do Estado Novo, vinculado a «uma ideologia de submissão das mulheres» que silenciou as ténues mas reais posições de natureza emancipatória projectadas durante a Primeira República; do outro, o peso do «pensamento dogmático das esquerdas políticas», que não souberam «captar a dimensão plural dos feminismos» e aquilo a que a autora chama «as contradições de género na sociedade», sistematicamente subsumidas na lógica da unidade na acção.

Estas duas limitações são referidas e explicadas, mas não é o seu reconhecimento aquilo que de mais inovador e substancial este volume oferece. Este papel é preenchido com um levantamento exaustivo, o primeiro feito entre nós, dos movimentos, correntes, intervenções e iniciativas capazes, entre 1947, quando a ditadura encerrou o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, e 2007, o ano em que a despenalização do aborto foi referendada, de projectar na sociedade portuguesa vozes de denúncia e de resistência, mas também de afirmação de direitos e de expectativas, relacionadas com a luta contra o silenciamento e a subalternização das mulheres. A narrativa segue assim uma sequência cronológica que vai revelando um movimento cada vez mais afirmativo e autónomo: os anos 50, durante os quais o feminismo se diluía num antifascismo determinante; os anos 60, quando os ecos da nova vaga internacional dos feminismos chegam a Portugal; os anos 70, quando a abertura marcelista e depois o momento revolucionário de Abril impõem rápidas alterações; os anos 80, correspondendo a um tempo de impasse e reagrupamento; e enfim os últimos vinte anos da nossa existência partilhada, quando o discurso e o activismo feministas se emancipam, conquistando um destaque social sem precedentes e ficando em condições de influenciar significativas mudanças de natureza legislativa.

Feminismos resulta de uma tese de doutoramento e esta condição de trabalho académico reflecte-se, inevitavelmente, no que de melhor, mas também de um pouco menos completo, este livro retém. Mostrando como só tardiamente o tema chegou às universidades, necessitando de anos de um trabalho difícil, pioneiro, cheio de escolhos, para ultrapassar mal-entendidos e preconceitos, Manuela Tavares compõe um importante e útil levantamento dos processos e das vias tomados para que esta dificuldade tenha vindo a ser gradualmente ultrapassada. Já a leitura crítica da evolução da teoria e da prática feminista, e dos seus grandes dilemas, na relação com a realidade portuguesa contemporânea, projectada nas sessenta páginas finais, justificava talvez um esforço acrescido. De facto, uma tese académica produzida numa área como esta – na qual estudo, reflexão e activismo se entrecruzam forçosamente – ganharia ainda um maior interesse se, a par da incontestável solidez da investigação cujos resultados nos são aqui oferecidos, integrasse uma dimensão mais assumidamente prospectiva, capaz de confrontar os problemas que persistem e aqueles que estão a emergir num campo do conhecimento e da prática social que se mantém em ebulição.

[Manuela Tavares, Feminismos. Percursos e desafios (1947-2007). Texto Editores. 750 págs. Versão ligeiramente revista de um texto publicado na LER]

 

    Atualidade, Democracia, Olhares.