Em 1941, Mircea Eliade, o professor e escritor reconhecido como um dos fundadores da história moderna dos mitos e das religiões, foi nomeado adido cultural e de imprensa junto da embaixada da Roménia em Lisboa. Por aqui se manteve até 1944, vivendo por isso em Portugal um dos períodos mais agitados da história europeia do século passado, incluindo-se nesta agitação a vivida então no seu conturbado país, cujo governo por essa altura colaborava activamente com a Alemanha de Hitler. Nesta «terra incógnita» para o romeno comum, vem encontrar um «oásis de tranquilidade», e uma acalmia na sua própria vida, que rapidamente associa à lógica de funcionamento do Estado Novo, ao padrão de vida que este impõe à sociedade portuguesa e à figura tutelar, aos seus olhos providente e benevolamente paternal, de Oliveira Salazar.
Esta obra resulta desse encontro e desta percepção, de certa forma adequada a um homem conservador e de direita, que, ademais, via na intervenção do espírito na área do político o caminho para definir a melhor forma de governação. Portugal viva então, precisamente, os anos de aplicação da «política do espírito», tendente, sob a enérgica orientação de António Ferro, a criar uma «atmosfera» propícia a uma unanimidade construída em prol de um destino comum. À cabeça do qual se colocava, indiscutivelmente, a orientação de Salazar. Enquanto trabalhava, com a ajuda de intelectuais muito próximos do regime como Manuel Múrias, João Ameal e Alfredo Pimenta, nesta hagiografia do governante português, Eliade ia pois associando o destino colectivo que testemunhava e a figura que o corporizava ao projecto de uma «revolução espiritual» universal que concebia como modelo.
Salazar e a Revolução em Portugal inaugura, tal como se declara na útil introdução a esta edição, a «construção do mito luminoso do fundador do Estado Novo português», sobrepondo a sua intervenção ao clima de desassossego, de «guerra civil», de «ausência de descanso», que o teria antecedido. Participa pois na construção de um «mito negro» do liberalismo e da experiência da República no qual o regime salazarista irá, ao longo de décadas, fundar interna e externamente a sua legitimidade. Eliade, insiste neste aspecto, servindo-se dos êxitos que vê ou que julga ver na actividade do governante português para sublinhar o seu papel, tomado sempre como exemplar, na afirmação desse complexo de «crenças cristãs, latinas e europeias» que ele próprio na época partilhava e procurava propagar. Uma edição útil para compreender historicamente a auréola de admiração que, nesses distantes anos 40, interna e externamente Salazar ainda inspirava em muitas consciências.
Mircea Eliade, Salazar e a Revolução em Portugal. Apresent. de Sorin Alexandrescu. Introd. de Carlos Leone, José Eduardo Franco e Rosa Fina. Esfera do Caos. Trad. de Anca Milu-Vaidesegan. 256 págs. Versão revista de um texto publicado na LER.