No debate sobre os caminhos mais próximos da «esquerda à esquerda» será bom reflectir sobre um aspecto, apenas aparentemente menor, que é mais fácil de abordar por quem fala do lado de fora de qualquer organização, sem compromissos com essa noção de unidade – ou de combate de tendências – que constrange sempre a liberdade crítica. O vício e a formação de historiador das ideias levam-me aqui a uma curta viagem até ao passado e a dois livros que cruzaram a história da esquerda, fundando um padrão de combate de ideias que me parece perverso e está na origem de parte considerável de alguns dos piores tiques e sintomas de doença crónica que atravessam a esquerda de matriz marxista. O primeiro foi a Crítica do Programa de Gotha, um dos mais importantes trabalhos de Marx, editado em 1891 mas escrito muito mais cedo, em 1875. O segundo foi A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky, publicado em 1918 por Lenine. Um e outro tiveram como alvo a crítica de «oportunismos», ou «desvios», em ambos os casos tomados como formas inaceitáveis de pactuar com o capitalismo. Um e outro tiveram também como objectivo a defesa de uma «tirania das maiorias» consumada no rosto, mais vago e benévolo em Marx, mais cru e objectivo em Lenine, da «ditadura do proletariado». O que importa aqui não é, porém, debater o conteúdo de cada uma das obras, mas sim observar os termos em que foram escritas.
Em ambos os casos, tratou-se de defender vigorosamente uma estratégia para o movimento operário, falando para dentro do mesmo e contestando posições de pessoas que tinham sido ao longo de décadas, e como tal ainda se mantinham, companheiros de luta contra os males do capitalismo. Aquilo que sobressai não é, no entanto, o extremar de posições, mas sim a forma como ele é proposto, empurrando de maneira brutal as vozes discordantes para o campo do «inimigo de classe», qualificando as suas posições de abjecta e imperdoável traição, fechando qualquer porta um verdadeiro debate ou à confluência com base em aproximações no campo do combate político e sindical. Elas fundam a presunção de uma «linha justa» dentro do movimento socialista e a ideia de que quem dela se afasta (Lasalle, Kautsky e os seus seguidores) não merece ser considerado ou sequer ouvido. Tornou-se «inimigo», apóstata, com a agravante de conhecer os métodos e as fraquezas de quem se lhe opõe, o que os transforma no mais perigoso, no pior dos inimigos. Que é preciso atacar sem piedade, caluniar, isolar, calar. O que impossibilita o diálogo, ou conceber sequer a ideia de dialogar com tal tipo de gente. Que diferença da encontrada na crítica, severa mas honesta, feita por Rosa Luxemburgo, em Reforma ou Revolução? (1900), à concepção de social-democracia proposta por Edward Bernstein!
A atitude de Marx, mas principalmente a de Lenine, que para crescer se alimentou no plano teórico da obra do primeiro, consagrou sob este aspecto uma noção truncada de democracia (que leva a aceitar apenas as posições que validam os nosso pontos de vista) e de humanidade (que faz com que só conte para nós quem como nós pensa ou quem podemos influenciar sem restrições). O desvario estalinista e maoista apenas levou mais longe este padrão de imposição da verdade, filho do crisol político do marxismo-leninismo, que lhe é anterior e lhe sobreviveu (e que o próprio trotskismo jamais rejeitou de todo). É ver a forma crispada, agressiva, como no debate em curso os sectores que ainda se conservam amarrados a esse modelo interpelam – mesmo quando formalmente aceitam revê-lo neste ou naquele pormenor – as propostas que lançam dúvidas sérias sobre as posições irredutíveis, «de princípio», que consideram representar o santo-dos-santos da sua fé. Trata-se de uma «doença má», crónica, um vestígio daquela antiga propensão para a agressividade contra o que traga consigo o aroma da heresia, que deve ser encarada de frente por quem tente combatê-la, com vista a diminuir-lhe os efeitos e a não deixar que destrua, de uma vez por todas, o corpo dessa esquerda social, com valores mas sem dogmas, que a experiência totalitária pré-1989 quase apagou da face da Terra.