O título do livro explica-se de forma simples, embora brutal: estima-se que ao longo dos últimos cem anos cerca de 150 milhões de pessoas foram vítimas de iniciativas persistentes de extermínio, responsáveis, no seu conjunto, pela duplicação do número de mortos em combate contabilizados em todas as guerras que tiveram lugar no mesmo período. A tese central de Daniel J. Goldhagen apoia-se nesta contabilidade avassaladora para mostrar que ela não dependeu de acasos, de circunstâncias, ou da iniciativa isolada de dirigentes transfigurados em serial killers, mas antes de escolhas políticas apoiadas num razoável ou mesmo num amplo consenso social. A ideia já se encontrava, aliás, presente numa obra anterior deste cientista político americano, motivo pelo qual foi objeto de feroz crítica: em Hitler’s Willing Executioners, saída em 1996, considerava que a busca da Solução Final determinada pelos nazis apenas fora possível com a cumplicidade, ou pelo menos a complacência, das pessoas comuns, alemães e aliados de outras nacionalidades, sem os quais os burocratas e os destacamentos especiais do Terceiro Reich não poderiam ter levado a cabo de modo tão eficaz o seu trabalho sujo. A obra foi, aliás, criticada por historiadores como Norman Finkelstein, que acusou o seu autor – sendo ambos, acusador e acusado, filhos de sobreviventes do Holocausto – de justificar com a sua explicação a criação de uma «indústria do Holocausto» de orientação sionista.
Neste A Pior das Guerras, Goldhagen amplia consideravelmente a sua abordagem da violência genocida, insistindo no facto desta não advir da intervenção de misteriosas aberrações humanas ou de atrocidades pontuais, mas antes de formas de intervenção política, militar e policial geralmente da responsabilidade de Estados e de governos internacionalmente reconhecidos. Lembra a invenção dos campos de concentração pelos espanhóis na Cuba colonial para depois se referir à iniciativa britânica na África do Sul durante a guerra anglo-boer, produzindo então um modelo que «apenas» foi aperfeiçoado nos campos do Gulag soviético, da Alemanha Nazi, da Turquia apostada no desaparecimento da nação arménia, dos Estados Unidos capazes de internarem mais de 100.000 nipo-americanos a partir de 1942. Um catálogo de atrocidades comprovativos da banalidade e da organização de um Mal ao serviço de interesses políticos, étnicos ou económicos que têm percorrido lugares tão distintos como o Tibete, a Coreia do Norte, a ex-Jugoslávia, o Iraque, o Ruanda ou o Darfur. O autor anota também que uma excessiva importância tem sido atribuída à intervenção letal dos instrumentos high-tech de assassinato de massas, como as câmaras de gás utilizadas pelos alemães ou o armamento nuclear, para enfatizar o facto de grande parte das mortes ter sido levada a cabo de forma direta, com a utilização de simples espingardas, de artilharia pesada ou mesmo de armas brancas, o que ampliou a necessidade de uma organização sistemática do assassinato de massas. Hitler, Estaline, Mao Tsé-Tung ou Pol Pot não foram, pois, simples «chefes de bando», mas o vértice de máquinas oleadas, aplicadas em fazer do extermínio o instrumento fundamental de uma ação conscientemente preparada e metodicamente levada a cabo.
Em consonância com esta perspetiva, propõe-se então uma revisão completa da literatura produzida a propósito dos genocídios e das chacinas executados de forma organizada, propondo-se mesmo que o conceito de «crime contra a Humanidade», tendente a privilegiar o que é exceção e a desvalorizar o que foi preparado e levado a cabo ao longo de anos ou de décadas, seja substituído pelo de «guerra contra a Humanidade». Sugere-se também, na tentativa de eliminar o flagelo, a ultrapassagem de intervenção sistematicamente limitada e condescendente das Nações Unidas, com a sua reverência pela soberania dos Estados e os princípios da não-intervenção. Contra a injustiça colossal que é o objeto central do seu estudo, Goldhagen pugna então pela criação de instituições políticas verdadeiramente eficazes, em condições de salvar as inúmeras vidas que continuam em perigo. Vale a pena conhecer os seus argumentos.
Daniel Jonah Goldhagen, A Pior das Guerras. Genocídio, Extermínio e Violência no Século XX. Trad. de Artur Lopes Cardoso. Casa das Letras. 776 págs. Publicado na LER de setembro de 2011.