Discordo em absoluto da tentativa de proibição a decorrer na Bélgica de Tintim no Congo, o segundo livro de banda desenhada de Hergé. O motivo invocado é a perspetiva, próxima dos estereótipos eurocêntricos e racistas da África e dos seus naturais não-caucasianos, que em 1931, quando o álbum foi editado pela primeira vez, dominava a maior parte do hemisfério norte. Sob este aspeto, o livro incomoda, sem dúvida, mas não menos que milhares de outros, fáceis de encontrar em bibliotecas e livrarias, contendo representações e ideias que podemos abominar mas não devemos apagar, pois fazem parte do património coletivo e servem até para mostrar, por oposição, aquilo que consideramos detestável e merece, muitas vezes, ser conhecido para ser lido criticamente. Neste caso, aliás, o próprio Hergé (1907-1983) veio a reconhecer que na altura da criação da aventura congolesa do jovem repórter belga, tal como acontecera com o também polémico Tintim no País dos Sovietes, vivia num ambiente no qual o preconceito e a recusa da diferença eram a norma: «Era 1930. Conhecia desse país apenas o que as pessoas contavam na época: ‘os negros são grandes crianças, felizmente estamos lá!’, etc. E desenhei os africanos de acordo com esses critérios, de puro espírito paternalista, que era o da época na Bélgica».
Se vale alguma coisa dar o meu próprio exemplo sobre os perigos de má-formação cidadã que se podem correr através da leitura desta história de Tintim e de outras leituras «deformadoras», posso dizer que a devorei em criança e não deixei por isso de crescer visceralmente antirracista e anticolonialista. Ao ponto de mais tarde ter sido perseguido, detido e punido precisamente por esse motivo. Para além disso, e como tanta gente, também li Mein Kampf antes da maioridade e não me tornei por isso nazi. Li a Bíblia e o Corão muito cedo e não deixei de ser agnóstico. Li as Questões do Leninismo e não fiquei estalinista. Li (escondido, admito) o Livro de S. Cipriano e, ao contrário dos avisos, não «amaluquei». Li a Filosofia na Alcova, do Marquês de Sade, e não me tornei pornógrafo ou libidinoso compulsivo. Forçaram-me a ler, a ouvir e até a decorar frases inteiras de Salazar e não deixei de detestar desde o primeiro instante os valores e a visão do mundo que através delas me procuravam impor. Entre estes contava-se a perceção da separação rigorosa entre o proibido e o permitido que gradualmente foi fazendo de mim, como de tantas outras pessoas que viveram a mesma experiência, um adepto convicto e um militante da democracia.
Por isso, se acompanho em parte o cidadão congolês Bienvenu Mbutu Mondondo – mesmo ressalvando o anacronismo e o excesso de negativismo que pautam a sua leitura – quando este considera que esta banda desenhada de Hergé «faz a apologia da colonização» e constitui «um insulto à população negra», já não posso aceitar que a justiça belga, a seu pedido, retire o álbum de circulação e o proíba «em todo o espaço público», conforme já tem acontecido, com justificações análogas, em diversos locais públicos. Por exemplo na Biblioteca Pública de Brooklyn, onde transitou para o cofre-forte no qual se guardam as leituras reservadas, acessíveis apenas por interposição de pedido justificado e que precisa ser apreciado para ser deferido. Nestas condições, afinal, ressurge sempre no horizonte a conhecida aproximação entre o vislumbre do fruto proibido e o desejo incontrolável de o ter nas mãos para lhe poder dar uma dentada. Ou a enorme lista de livros, de músicas, de filmes, de peças de teatro, de quadros, de poemas («alguns dos nosso melhores poetas são fascistas», lembrava Martin Kayman a propósito de Ezra Pound), que são património coletivo, independentemente do seu conteúdo poder ser sujeito à crítica. Sob essa perspetiva condenável, obscurantista de facto, mereceriam ser proibidos. Ou depurados, como se tentou já fazer com as três aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain, a propósito da palavra nigger e de outras afins. O que é de todo inaceitável.