«Nunca ficava tão feliz como quando ia a algum lado sozinho, e quanto mais tempo demorasse a lá chegar, melhor. Caminhar era agradável, andar de bicicleta era aprazível, as viagens de autocarro divertidas. Mas o comboio era o céu. Nunca me dei ao trabalho de explicar isto aos meus pais e amigos, e por isso via-me obrigado a fingir objetivos: lugares que queria visitar, pessoas que queria ver, coisas que precisava de fazer. Tudo mentiras.» (Tony Judt, O Chalet da Memória)
À medida que fui avançando na leitura da última obra de Tony Judt, num comovente registo autobiográfico procurado quando a vida já lhe fugia, fui ampliando a impressão que me surgiu há mais ou menos dez anos, quando o li pela primeira vez. Estava ali, naquelas páginas, o rasto de uma pessoa que eu nunca vira, com quem jamais falara, com uma origem social, um trajeto geográfico e uma formação tão diferentes dos meus, e que, no entanto, «pensava como eu», interessando-se recorrentemente por muitos dos assuntos, tradições e linguagens com os quais me importo. O Chalet da Memória veio pois reforçar essa impressão, mas ao mesmo tempo introduzir-lhe uma nuance que me parece importante. Sim, é provável que partilhássemos temas ou preocupações, que tivéssemos opiniões bastante ou relativamente próximas – virá daí a sensação de perda que observei com a sua morte precoce; vem daí também, seguramente, a razão pela qual o recomendo vivamente aos alunos que ainda leem – mas existe algo mais, e que será comum a muito mais pessoas do que a Tony e mim próprio, a criar esse estado de proximidade. Este «algo mais» observo-o a dois planos.
O primeiro tem a ver com o tempo em que chegámos a este mundo. Judt era um pouco mais velho do que eu, mas ambos nascemos e crescemos numa Europa na qual, se apurássemos os sentidos, ainda era possível escutar o estrondo da artilharia pesada e sentir os ecos da guerra contra Hitler. Partilhando um tempo no qual a miséria e a esperança, o trauma e o alívio, competiam ainda de forma muito evidente. Já o segundo plano será mais de ordem temperamental: o historiador fazia parte, e jamais deixou de o fazer, daquela estirpe de rapazes um tanto introvertidos e que se viam a sim próprios como inequívocos rebeldes – ser rapaz era aqui importante, pois implicava uma intimidade não-partilhada que a maioria das raparigas podia então ultrapassar nos seus gineceus –, comprazendo-se numa observação do mundo atenta, individualista e forçosamente solitária. Leio o passo transcrito no início e sou capaz de revisitar memórias contíguas com uma boa sensação de cumplicidade. Mas também com uma tomada de consciência daquela mesma espécie de perda da qual, nos últimos anos, Judt vinha dando conta: a dessa esperança juvenil, reconfortante e incitadora, que agora a todos começa a ser difícil manter. O que não significa que se preveja o desaparecimento para breve dos sócios do clube dos rapazes solitários. Nem pensem.