Para além de filósofo, crítico e académico, atividades em regra associadas a hábitos de recolhimento e ao sossego das bibliotecas, Slavoj Žižek é, como se sabe, personagem único do seu próprio espetáculo. Deve-o em parte ao estilo idiossincrático e enérgico, no qual o desassombro e a iconoclastia ocupam um lugar central. Mas também ao facto de atrair um público interessado na reflexão, por vezes nos sound bites, de alguém que volta a colocar a ideologia, há duas décadas declarada liquidada, no centro do debate teórico. Fá-lo seguindo um método caleidoscópico, no qual os seus interesses de partida – Lacan, Lenine, o ciberespaço, a crise da modernidade, o pós-Marxismo ou Hitchcock – surgem combinados com os mais diversos e desclassificados temas da materialidade contemporânea, num processo de «tudo ligado com tudo», associado à diluição da fronteira entre alta e baixa cultura e ao repensar radical da esquerda política, que reúne legiões de indefetíveis entusiastas mas também de cáusticos detratores. Viver no Fim dos Tempos, publicado originalmente em 2010 e acabado de traduzir numa série de edições do esloveno que a Relógio d’Água tem vindo a publicar, é um excelente exemplo dessa prolixidade e da vastidão de um olhar que incorpora a capacidade de questionar as dimensões menos visíveis mas não menos obsidiantes do mundo atual.
O ponto de partida é a iminência da catástrofe, mas também a procura da redenção: a crise ecológica mundial, os desequilíbrios do sistema económico, a revolução biogenética e o caráter explosivo das clivagens sociais sugerem um cenário de desastre, olhado como inevitável, que é preciso enfrentar. Não se trata de uma mera projeção: ele está já diante de nós, associado a um impasse que impõe um novo começo. Só que este não se obtém através da mera regeneração da ordem instalada, requerendo antes respostas coletivas que correspondam, cada uma delas, ao reconhecimento da «grande desordem debaixo do céu», uma expressão recolhida em Mao, e a etapas de um luto que Žižek considera necessário cumprir para a podermos superar. Servindo-se de um esquema proposto pela psicóloga Elisabeth Klüber-Ross para caracterizar as fases pelas quais passa alguém que sofre de doença terminal, distribui então por cinco capítulos, correspondendo cada um deles a uma dessas fases, o modo como a crise do sistema capitalista introduz a perceção da possibilidade, ou mesmo da necessidade, de uma ordem nova e emancipatória.
Aborda assim os processos de recusa (articulados com as formas de ocultação ou de evasão ideológica que povoam o presente), de cólera (prolongados na generalização da violência de rua e nos surtos do fundamentalismo religioso), de negociação (desenvolvidos no campo da crítica da economia política e da renovação da teoria marxista), de depressão (relacionados com a desestruturação da personalidade individual e novas formas de patologia subjetiva) e de aceitação (associados ao detetar de uma subjetividade emancipatória que emerge, unida a um novo olhar sobre a utopia comunista). Fá-lo, como seria de esperar por quem o tem acompanhado, sem receio de escavar práticas e mitos enraizados no nosso dia-a-dia, incluindo-se nestes alguns dos que a tradição dogmática da esquerda ajudou a construir. O resultado pretende ser, como o próprio Žižek declara, a produção de «um livro de combate», no qual o risco do confronto e da busca de uma ordem mais justa representa a única via para a superação do «ponto zero apocalíptico» com o qual presentemente nos confrontamos. Vale a pena tomá-lo a sério e passar algum do nosso tempo útil a lê-lo.
Slavoj Žižek, Viver no Fim dos Tempos. Trad. de Miguel Serras Pereira. Relógio d’Água. 496 págs. Publicado na revista LER de Novembro de 2011.