A morte de Kim Jong-il está a servir ao governo norte-coreano para intensificar uma das características mais brutais do seu «socialismo dinástico»: o drama da escravidão dos corpos e das consciências imposto à generalidade dos cidadãos, sob o efeito da repressão, do treino, da propaganda, do preconceito e da ignorância de realidades alternativas. Do livro de Barbara Demick, A Longa Noite de um Povo (ed. Temas e Debates), que venceu em 2010 o Prémio Samuel Johnson e compila diversos testemunhos de cidadãos da Coreia do Norte que puderam passar a fronteira e escapar ao regime concentracionário de Pyongyang, retiro uma descrição de momentos que se seguiram, em 8 de julho de 1994, ao desaparecimento de Kim Il-sung, fundador do regime. O paralelismo com as cenas públicas de hoje é inevitável.
– Abogi, Abogi! – gemiam as velhas, empregando o título honorífico usado para uma pessoa se dirigir ao seu pai ou a Deus.
– Como pudeste deixar-nos assim de repente? – gritavam os homens por sua vez.
Os que esperavam na fila saltavam para cima e para baixo, batiam na cabeça, caíam em desfalecimentos teatrais, rasgavam as roupas e davam murros no ar, numa raiva inútil. Os homens choravam tão copiosamente como as mulheres.
A teatralidade da dor assumia um aspeto competitivo. Quem conseguia chorar mais alto? Quem estava mais perturbado? Os que prestavam o seu tributo eram incitados pelos noticiários televisivos, que transmitiam horas e horas de pessoas a prantear, homens adultos com lágrimas a correrem-lhe pelo rosto, a baterem com a cabeça nas árvores, marinheiros a baterem com a cabeça nos mastros dos navios, pilotos a chorarem na cabina de pilotagem, e assim sucessivamente. Estas cenas eram intercaladas com imagens da trovoada e dos copiosos aguaceiros. Parecia o dia do Juízo Final.
«O nosso país está envolvido no desgosto mais profundo nos cinco mil anos de história da nação coreana», afirmava um locutor na televisão de Pyongyang.
A máquina de propaganda norte-coreana começou a trabalhar a toda a força, criando as histórias mais estranhas sobre o facto de Kim Il-sung não estar realmente morto. Pouco depois da sua morte o governo norte-coreano começou a erigir 3200 obeliscos, por todo o país, que viriam a ser chamados «Torres de Vida Eterna», Kim Il-sung continuaria a ser o presidente em título após a morte. Um filme de propaganda distribuído pouco depois da sua morte afirmava que Kim Il-sung poderia regressar se as pessoas o chorassem com empenho suficiente.
«Quando o Grande Marechal morreu, milhares de grous desceram do céu para o virem buscar. As aves não puderam levá-lo porque viram que os Norte-Coreanos choravam e gritavam e batiam com os punhos no peito, puxavam os cabelos e batiam com os pés no chão.»
O que começara como uma explosão espontânea de dor tornou-se uma obrigação patriótica. As mulheres não deviam usar maquilhagem ou arranjar o cabelo durante o período de luto de dez dias. A bebida, a dança e a música foram proibidas. Os comités mantinham o registo de com que frequência as pessoas se dirigiam à estátua para mostrarem o seu respeito. Todos estavam a ser espiados. Não se limitavam a observar atentamente os atos, também as expressões faciais e o tom da voz, procurando avaliar a sinceridade.
Miran teve de ir duas vezes por dia durante o período de luto de dez dias, uma vez com as crianças do jardim-de-infância e outra apenas com a sua unidade de trabalho de professores. Começou a temer não só o desgosto mas também a responsabilidade de se certificar de que as crianças frágeis não eram pisadas ou entravam em histeria. Havia uma criança de cinco anos, na sua turma, que chorava tão alto e era tão demonstrativa no seu desgosto que Miran temia que desmaiasse. Mas depois reparou que a rapariga cuspia na mão para molhar o rosto com saliva. Não havia lágrimas a sério.
– A minha mãe disse-me que, se não chorar, sou uma má pessoa – confessou a rapariga.
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