Como escreve o diário Público, do qual este texto foi retirado, Václav Hável foi «aquele intelectual raro que, em vez de forçar a sua entrada na política, viu a política ser-lhe imposta». Em 1998, já como Presidente da República Checa, publicou esta reflexão sobre os benefícios e os perigos da sua opção de vida. Ela pode ajudar-nos a enfrentar dois preconceitos perigosos. Um é aquele que considera o intelectual, «voz da razão», como uma espécie em vias de extinção, trocado pelo comunicador, que passa a mensagem com a dimensão crítica e analítica minimizada. O outro é o que proclama um ódio visceral «aos políticos», como se estes fossem «todos a mesma coisa», e à política como uma atividade julgada ignóbil. Em ambos os casos deixando o campo livre para aqueles que, de facto, se servem de tais preconceitos para viver na impunidade.
O intelectual e a política
Václav HávelPúblico, 21/12/2011
Será que um intelectual – por virtude dos seus esforços em ir além da superfície das coisas, em entender relações, causas e efeitos, em reconhecer os itens individuais como partes de entidades maiores e assim derivar uma consciência mais profunda desses factos e uma responsabilidade pelo mundo – se adequa à política?
Posto deste modo, cria-se uma impressão que considero ser o dever de qualquer intelectual de participar na política. Mas isso é absurdo. A política também envolve um número de requisitos especiais que só a ela são relevantes. Algumas pessoas preenchem esses requisitos; outras não, independentemente de serem intelectuais.
É minha convicção profunda que o mundo precisa – hoje mais que sempre – de políticos iluminados e previdentes que sejam suficientemente arrojados e tolerantes para considerar coisas que estão para além do âmbito da sua influência imediata tanto no espaço como no tempo. Precisamos de políticos dispostos e capazes de se erguer acima dos seus próprios interesses, ou dos interesses particulares dos seus partidos ou estados, e de agir de acordo com os interesses fundamentais da humanidade de hoje – isto é, de se comportar do modo que todos se deviam comportar, mesmo que a maior parte não o faça.
Nunca antes a política esteve tão dependente do momento, das disposições fugazes do público ou dos meios de comunicação. Nunca antes foram os políticos tão impelidos a perseguir o efémero e o tacanho. Parece-me muitas vezes que a vida de muitos políticos prossegue do noticiário televisivo de uma noite, para a sondagem à opinião pública da manhã seguinte, para a sua imagem televisiva na noite seguinte. Não tenho a certeza se a era atual de meios de comunicação de massas encoraja a emergência e crescimento de políticos da estatura de, digamos, um Winston Churchill; duvido que tal aconteça, embora possam sempre haver exceções.
Resumindo: quanto menos a nossa época favorece os políticos que se entregam a reflexões de longo prazo, mais esses políticos são necessários, e portanto mais intelectuais – pelo menos aqueles que correspondem à minha definição – deviam ser bem-vindos na política. Esse apoio poderia ser proveniente, entre outros, daqueles que – por qualquer razão – nunca entram na política, mas que concordam com esses políticos, ou pelo menos partilham a natureza moral subjacente às suas ações.
Oiço objeções: os políticos devem ser eleitos; as pessoas votam em quem pensa como elas. Se alguém quer progredir em política, deve prestar atenção à condição geral da mente humana; deve respeitar o ponto de vista do chamado eleitor “médio”. Um político deve, goste ou não, ser um espelho. Não deve ousar ser um arauto de verdades impopulares, pois o reconhecimento das quais, embora talvez no interesse da humanidade, não é considerado pela maioria do eleitorado como fazendo parte das suas preocupações imediatas, ou poderá mesmo ser considerado como antagonista dessas preocupações.
Estou convencido de que o propósito da política não consiste em satisfazer desejos de curto prazo. Um político também deve procurar o apoio popular às suas próprias ideias, mesmo que impopulares. A política deve implicar convencer os eleitores de que o político reconhece ou compreende algumas coisas melhor do que eles, e é por essa razão que devem votar nele. As pessoas podem assim delegar num político certos assuntos que – por uma variedade de razões – não conseguem apreender, ou com os quais não se querem preocupar, mas que alguém tratará por eles.
Claro, todos os sedutores das massas, tiranos potenciais, ou fanáticos, usaram este argumento para suportar a sua posição; os comunistas fizeram o mesmo quando se declararam o segmento mais iluminado da população e, por virtude desta alegada iluminação, arrogaram-se o direito de governar arbitrariamente.
A verdadeira arte da política é a arte de ganhar o apoio das pessoas para uma boa causa, mesmo quando a perseguição dessa causa possa interferir com os seus interesses particulares momentâneos. Isto devia acontecer sem impedir alguma das muitas maneiras em que podemos confirmar que o objetivo é uma boa causa, garantindo assim que cidadãos confiantes não são dirigidos para servir uma mentira e sofrer desastres como consequência, numa busca ilusória de prosperidade futura. Deve ser dito que existem intelectuais que possuem uma muito especial capacidade para cometer este mal. Elevam o seu intelecto acima do de todos os outros e eles próprios acima de todos os seres humanos. Dizem aos seus concidadãos que se não entendem o brilho do projeto intelectual que lhes é oferecido, é porque são mentalmente limitados e ainda não se içaram às alturas habitadas pelos proponentes do projeto. Depois de tudo o que passámos no século XX, não é muito difícil reconhecer como pode ser perigosa a atitude deste intelectual – ou antes, deste quase-intelectual. Lembremo-nos de quantos intelectuais ajudaram a criar as várias ditaduras modernas!
Um bom político deve ser capaz de explicar sem tentar seduzir; deve procurar humildemente a verdade deste mundo sem clamar ser o seu dono profissional; e deve alertar as pessoas para as boas qualidades que possuem, incluindo um sentido dos valores e interesses que transcendem o pessoal, sem se apropriar de um ar de superioridade nem impor o que seja aos seus iguais. Não deve ceder aos ditames dos humores públicos ou dos meios de comunicação de massas e ao mesmo tempo nunca dificultar o escrutínio constante das suas ações.
No reino de uma tal política, os intelectuais deviam fazer sentir a sua presença numa de duas maneiras possíveis. Podiam – sem achar isso vergonhoso ou aviltante – aceitar um cargo político e usar essa posição para fazer o que consideram correto, não apenas para se agarrar ao poder. Ou poderiam ser quem empunha um espelho para os que estão em posição de autoridade, garantindo que os últimos servem boas causas e que não começam a usar lindas palavras como uma máscara para más ações, como aconteceu a tantos intelectuais na política nos últimos séculos.
Tradução de António Chagas/Project Syndicate