A minha formação cristã já decorreu há muito tempo. Mas não o tempo suficiente para que eu já confunda a quadra do arrependimento e da expiação do pecado pela via dolorosa da penitência, que decorre na Quaresma, com as esperanças serenas e indulgentes que o Natal supostamente transporta consigo. Todavia, como o suceder do tempo acelera cada vez mais, existem erros e dislates cometidos pela esquerda portuguesa que quanto mais tarde começarem a ser expiados – no sentido da emenda, não da fustigação dos seus executantes – tanto mais longa será a via-sacra de penitência que irão impor.
Há que designar as realidades pelos nomes, sem qualquer intenção de abater este ou aquele mas também sem fazer de conta que está tudo bem. Ou mais ou menos bem. A desgraça pública patrocinada pelo governo da direita tem, de facto, o seu reverso na responsabilidade da esquerda pela situação criada e pela ausência de uma saída. Nesta imputação de culpa existem duas asneiras com ecos brutais na nossa vida que convém dissecar na perspetiva da reparação. Primeira asneira: ter-se considerado o PS de Sócrates, ou qualquer outro, como «rigorosamente igual» ao PSD de Coelho. Está visto que não era e, como muitas pessoas que votaram à esquerda dos socialistas logo preveniram, vê-se agora como esse erro de perspetiva nos empurrou para a queda abissal no pântano do capitalismo mais primário e bestial. Segunda asneira, consequência da primeira: que a insistência na moção de censura responsável pelo derrube do governo PS tornou essa queda inevitável.
Tudo isto se relaciona com uma imposição da realidade que sei levantar muitos problemas à «esquerda da esquerda» mas que se mostra incontornável. Sem hipóteses de uma alternativa autónoma, eventualmente mais profunda e radical, nesta fase, que possa transformar-se em projeto de poder, só um grande (grande mesmo) arco de unidade pode ultrapassar a lógica exclusiva do mero protesto e lançar as dinâmicas que conduzam ao derrube da direita. E este, por muito que doa a quem tenha a memória fresca – e a mim dói, acreditem – tem de incluir os socialistas. Ou melhor, não é palavrão, o Partido Socialista. Com cedências de todas as partes, claro. Procurando uma base mínima que, nesta fase, se dedique à tarefa ultra-urgente de combater o pior inimigo: o revanchismo insano da direita e a falta de visão e de coragem para defender o país e os seus por parte de quem, circunstancialmente mas com condições para determinar décadas do nosso futuro coletivo, está agora no governo. Quando o inadiável está na preservação «da paz, do pão, saúde, habitação», de que serve e a quem serve passar o tempo a projetar panoramas improváveis com rubras bandeiras a adejar?