Quando foi publicado este pequeno livro de Tony Judt, o seu último, o destaque das notícias e da crítica centrou-se nas condições dramáticas em que foi escrito. Em 2008, três anos após a publicação do aplaudido Pós-Guerra, fora-lhe diagnosticada uma doença motora neurológica, incapacitante e irreversível, que rapidamente o iria fazer perder a mobilidade, a voz e por último a vida. Este seu derradeiro esforço reflexivo foi, por isso, produzido em condições particularmente difíceis e incomuns. No segundo capítulo, «Noite», saído originalmente em janeiro de 2010 – como a maioria dos textos que integram o volume na New York Review of Books –, fala da forma como as características da doença o foram deixando livre para contemplar, com um desconforto mínimo, o desenvolvimento catastrófico da sua própria destruição. Mas é o primeiro texto, que dará o título à obra, aquele que melhor caracteriza a sua intenção. Nele o historiador explica-nos o método de que se serviu, noite após noite de solidão e imobilidade, para, recorrendo aos mesmos artifícios mnemónicos utilizados pelos primeiros pensadores e viajantes modernos, revisitar, reorganizar e expor algumas das suas mais marcantes experiências.
Como se percorresse de novo as acomodadas divisões do mesmo chalet da vila de Chesières, na Suiça, onde passara umas inesquecíveis férias da infância, Judt guia-nos então por um conjunto de temas unidos apenas pelo facto de se inscreverem na sua própria memória do reconhecimento crítico do mundo no qual cresceu e viveu. Aborda, desta maneira, aspetos tão diferentes como os hábitos das pessoas comuns na Inglaterra dos tempos de severa austeridade que seguiram à Segunda Grande Guerra, as descobertas de um jovem adolescente num mundo em acelerada mudança, a forte influência da cultura intelectual francesa na formação livresca da sua geração, a experiência um tanto rara como judeu assumidamente de esquerda, a sua vida em Paris nos tempos que precederam e acompanharam os acontecimentos de 1968, os avatares da vida universitária nos dois lados do Atlântico, a grandeza e as misérias dessa América que acabará por escolher como pátria de adoção, os percursos da «gente das franjas, a minha gente» que procura escapar aos tirânicos constrangimentos impostos pelas tensões identitárias.
Todavia, a característica mais extraordinária desta obra, dadas as circunstâncias em que foi produzida, é o facto de ela integrar um sentido da ironia e um otimismo enfático fora de comum. Tão sedutores quanto aparentemente despropositados para alguém que se sabia às portas da morte num trajeto sem remissão. A preocupação com a perda de um mundo mais humanizado, com o recuo do Estado social, com o estilhaçamento das utopias fundadoras das grandes causas nas quais um dia acreditara e que o tempo estava a varrer, não são apresentadas sob forma de lamúria ou como provas de uma qualquer fatalidade, funcionando antes, justamente ao invés, como alerta crítico. A ironia, e também o puro humor que constantemente transparecem destas páginas – rimo-nos muito, ao percorrê-las -, apenas sublinham esta dimensão prospetiva e positiva. Reforçando a impressão de não termos entre as mãos um objeto morto. Ou um livro de História que fala do passado recente com indiferença, como se este nada tivesse a ver connosco. Tem e muito.
Tony Judt, O Chalet da Memória. Trad. de Pedro Bernardo. Edições 70. 224 págs. Versão revista de uma nota publicada na LER de Dezembro de 2011.