Numa altura em que a livre e necessária contestação do único, a afirmação indispensável da divergência que ultrapassa a fronteira do consenso, a recusa da escolha entre dois únicos caminhos como gesto imperativo, volta a ser objeto de cerco no território da velha Europa – trocada pelo triunfo passageiro da normalização que encontra no que sai do carreiro, um escolho a remover, um vírus a eliminar – regresso ao ainda (ou quase) juvenil Eduardo Lourenço, daquela Heterodoxia I publicada pela Coimbra Editora no distante ano de 1949. Nele se destaca a necessidade e a grandeza, mas também o incontornável drama, do esforço de pensar e de agir em desacordo com os objetivos e a retórica do modelo de pensamento que se compraz com a sua própria imutabilidade.
Toda a vantagem parece estar do lado da ortodoxia em si mesma, da ideia de ortodoxia e não, claro está, desta ou daquela ortodoxia particular. A vida é, nas suas manifestações primordiais, afirmação, ato englobando uma série de atos, cada ser subordinado à lei dum ritmo, desobedecendo ao qual perecerá. Não quer isto dizer que a essência da individualidade é ortodoxia, caminho direito? Como a história é uma luta de individualidades (uni-individuais ou grupais), a luta é sempre entre ortodoxias.
Daí, segundo os ortodoxos, a necessidade inevitável da escolha. Os que se recusam à escolha, os eternos descobridores dum terceiro caminho que não existe em parte alguma (segundo as ortodoxias), os heterodoxos absolutos, devem ser destruídos quando o combate chegar. Assim pensava já o velho Sólon, a sabedoria laica de Atenas. Devem ser destruídos agora mesmo, que o combate, a luta pela verdade, está travada desde sempre. Não há lugar para os heterodoxos. Eles são incomensuráveis com Deus, com a Pátria, com o grupo, com a família, com o amor, com eles próprios. Abandonemo-los então à sua divisão tão amada e que pereçam, pois são o reino dividido em si mesmo de que fala o Evangelho. Inimigos do género humano.
Assim pensava Juliano dos cristãos e S. Domingos dos albigenses. Assim pensava Marx dos burgueses e os burgueses de Marx. Assim pensa Churchill dos comunistas e os comunistas de Churchill. Assim pensa todo o homem que possui certezas absolutas de outro homem que as nega.
(…)
A heterodoxia é a humildade do espírito, o respeito simples em face da divindade inesgotável do verdadeiro. Resistamos à ilusão de supor que tudo pode ser inundado de luz. Deixaríamos de ver.