É possível que jamais venha a escrever-se uma história da oposição ao Estado Novo capaz de mostrar a trajetória das muitas figuras, hoje reconhecidas como questionadoras da autoridade de Salazar e das orientações do regime, que com um e outro confluíram em muitos momentos ou a propósito de determinados princípios de política. Exemplar deste estilo de percurso é o capitão Henrique Galvão, cuja biografia, da autoria de Francisco Teixeira da Mota, acaba de ser editada. De facto, Galvão é hoje principalmente recordado pelo seu papel na luta contra o Estado Novo, que ocupou sensivelmente a última década da sua vida, e em particular pela retumbante iniciativa, concretizada em 1961, do assalto ao paquete Santa Maria. Foi aliás por esta atitude de resistência ativa que, trinta anos mais tarde, o Presidente Mário Soares o condecorou postumamente com a grã-cruz da Ordem da Liberdade. Todavia, durante a maior parte do trajeto cívico que escolheu, o seu posicionamento foi o diametralmente oposto, tendo participado no 28 de Maio, ocupado lugares de destaque no aparelho do regime (como importante dignitário da administração colonial, primeiro diretor da Emissora Nacional, organizador da Exposição Colonial do Porto e da Exposição do Mundo Português, deputado da União Nacional, entre outros) e defendido posições autoritárias, anticomunistas e até de apreço pelo nazismo.
Ora uma das características salientes desta biografia resulta do facto do seu autor acabar por dar uma dimensão de coerência a um trajeto que, pela simples coleção dos seus episódios, pareceria não ter condições para a reivindicar. Sendo esta uma biografia clássica, mais apoiada no percurso objetivo e nas justificações do próprio biografado do que numa abordagem desenvolvida das suas circunstâncias – uma opção completamente legítima, que confere uma dimensão romanesca à obra retirando-lhe o possível caráter de compêndio histórico – a definição dessa coerência torna-se mais transparente. Ela passa por três constantes que o acompanharam Galvão nas principais circunstâncias da vida: um apego permanente a África e à procura do que considerou sempre ser uma boa e honesta gestão da administração colonial (iniciado com o breve exílio angolano de 1927); uma inalterável propensão para a atividade conspirativa, que nas batalhas políticas colocava sempre à frente do mais demorado e aborrecido trabalho de organização; e um feitio inalteravelmente impulsivo, quezilento e irreverente, associado aos olhos dos seus inimigos à ambição e a uma ostensiva vaidade, mas que aos seus próprios se encontrava vinculado a princípios de ética e de lealdade dos quais ele próprio era o juiz.
«Isolado no meio da multidão», como em diverso momentos foi afirmando ser a sua eterna condição, parecia viver esta com uma certa dose autossatisfação, embora lhe associasse também uma dimensão trágica que o foi afastando sempre, como se tal destino lhe tivesse sido traçado, dos lugares cimeiros aos quais ambicionou chegar e dos quais considerava ser amplamente merecedor. O que era capaz de controlar e de racionalizar, isso foi-o conquistando através da escrita, tomasse esta a forma de artigo de jornal, de ensaio, de romance, de panfleto ou até de relatório oficial. Uma vertente mais esquecida que o biógrafo, fazendo justiça ao biografado, cuidadosamente destaca neste livro. O resultado é, naturalmente, bastante lisonjeiro para a memória de Galvão.
Francisco Teixeira da Mota, Henrique Galvão – Um Herói Português. Oficina do Livro. 404 págs. Versão revista de uma nota publicada na LER de Janeiro de 2012.