Papéis Roubados #17

Numa (como sempre) desassombrada entrevista concedida à Philosophie Magazine de Março deste ano («Ce qui importe, c’est la théorie. Je n’existe pas»), Slavoj Žižek reflete de maneira bem pouco consensual sobre algumas das expetativas e das escolhas da esquerda. Aqui fica parte da conversa, traduzida do francês.

P: Então o nosso atual modelo de democracia não é aquele que convém para lutar contra o capitalismo?

Não, claro que não, defendo mesmo o contrário! Nós dispomos, sem dúvida, de uma liberdade formal – mais ela é mesmo a única liberdade que resta. Se abolirmos a democracia formal, não obtemos a democracia real e perdemos a democracia enquanto tal. O único espaço de liberdade do qual dispomos reside nesse interstício entre a democracia formal e a forma adotada pela nossa efetiva falta de liberdade. O problema de saber de que forma ultrapassa o reinado todo-poderoso do dinheiro preservando a nossa liberdade é um problema muito sério. Eu não compro essas expressões-feitas marxistas: Vergesellschaftung, por exemplo, a «sociação», ou «o coletivo»… Ah! Ah! A que soam tais coisas?

P: Para si a forma é então a chave?

Completamente!

P: Mas você já escreveu: «Aquilo que impede hoje todo o questionamento radical do capitalismo é a crença na forma democrática da luta contra o capitalismo.»

Eu reformulo desta maneira: odeio 1968. Demasiada liberdade, demasiada fruição. Mas uma coisa pode salvar-se, essa mensagem de base avançando que a política se encontra também naquelas esferas (…) em que certas coisas acontecem: a subordinação das mulheres, as relações no seio da família, o que realmente se passa diariamente nas fábricas… em todos esses domínios põe-se a questão da liberdade, da política. Eis o maior problema: não abolir a democracia formal, mas como integrar igualmente essas esferas nos processos democráticos?

P: Então os situacionistas tinham razão: aquilo de que precisamos é de uma revolução do quotidiano?

Vivo obcecado por essa ideia, mas não no sentido soixante-huitard do termo. (…) Aquilo que quero dizer – e esse é um aspeto do meu posicionamento anticarnaval –, é que eu nunca me interessei verdadeiramente por essas centenas de milhares de pessoas que se juntam nas ruas para proclamar em alta voz a sua solidariedade. Isso não custa nada. O que realmente me interessa é o dia seguinte. (…) Fui recentemente convidado para ir a Atenas proferir um discurso mobilizador. E então disse-lhes: até este momento, tudo aquilo que vocês conseguiram foi que, em vez de um primeiro-ministro da esquerda moderada, meteram no poder um tecnocrata completamente neutro e um governo que até integra fascistas.

P: Mas de que maneira pensa canalizar essa energia?

Posso dar-lhe uma resposta brutal, que o vai chocar? Não sei. Mas tenho todo o direito a dar a minha opinião. Recuso deixar-me impressionar por essa velha chantagem constitutiva da esquerda, ou comunista: tu não estás autorizado a fazer o menor reparo crítico se não apresentares um projeto completo e perfeito… Mas eu não tenho projeto algum. (…)

P: Chegamos então à última questão…

Porque quer matar o camarada Estaline? (risos)

P: Porque é que certas pessoas o põem num altar? Querem que você seja o seu chefe?

Mas não lhe parece claro que eu me divirto bastante comigo mesmo? Que faço permanentemente de palhaço?

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