Charles Esdaile começa por recordar que Napoleão Bonaparte é, depois de Jesus Cristo, a personalidade histórica mais vezes representada no cinema, e também uma daquelas sobre quem mais se escreveu. Lembra também que poucos notáveis do passado determinaram posições tão extremadas, no seu próprio tempo ou na posteridade, quanto aquelas que desde cedo se definiram em volta do caráter, da ação e das intenções do «leão corso». De um lado, um certo entendimento da sua aparência como a de um monstro, capaz de pôr um continente inteiro a ferro e fogo apenas determinado por um desejo insaciável de poder e de fama. Do outro, a representação positiva de um visionário com papel decisivo no despertar da «Europa das nações», prova provada do dinamismo do «grande-homem» na História. Sem a intervenção do qual, no caso em apreço, o fim do Ancien Régime e a reforma política e administrativa da coisa pública não poderiam ter sido obtidos do modo e nos termos em que ocorreram.
Esdaile, historiador da Guerra Peninsular (1807-1814) sobre a qual tem publicado bastante, revisita aqui esse complexo legado interpretativo. Procurando no entanto observar a intervenção de Napoleão num plano que não se limita ao estudo detalhado das campanhas militares, nem a tem sequer como principal condicionante, ao contrário do que acontece com a maioria das obras da «historiografia napoleónica». Define três objetivos primordiais para a obra: sintetizar o trajeto e a iniciativa de Bonaparte, inserindo-os num debate que habitualmente está ausente e permanece dominado por tomadas de posição peremptórias; escrever uma história das Guerras Napoleónicas capaz de refletir a sua dimensão pan-europeia e não seja apenas francocêntrica; e colocar os doze anos de conflito envolvendo a ambição expansionista francesa no âmbito de uma cadeia de acontecimentos e de mudanças que envolveram o continente europeu de uma ponta à outra, sem exceção, e dos quais aqui se traça uma panorâmica completa e ao mesmo tempo absorvente.
O estudo criterioso das condições e dos episódios, fundamentais para uma compreensão mais completa, e menos emotiva do que crítica, desta biografia de Napoleão inscrita no tempo que a sua iniciativa pessoal moldou ou condicionou, não exclui, no entanto, a consideração da função desempenhada pela sua personalidade de protagonista de um intenso drama internacional. O historiador insiste em que sem a sua enorme determinação, e sem o seu insaciável desejo de glória, jamais o imperador teria, desde a Península Ibérica à Rússia, dos Balcãs à Escandinávia, da Polónia à Turquia, conseguido perturbar de maneira tão profunda as vidas e os destinos dos povos, tornando-se uma obsessão, ou um fantasma, que ainda se não dissolveu inteiramente. Se o seu nome teve, como tantas vezes se afirma, um papel fundamental no conhecimento mútuo e na aproximação dos povos europeus, esse papel foi, como escreve Esdaile, o «de bicho-papão» que a todos amedrontava.
Charles Esdaile, As Guerras de Napoleão. Uma história internacional. 1803-1815. Trad. de João Bernardo Paiva Boléo. A Esfera dos Livros. 676 págs. Versão revista de nota saída na LER de Março.