Logo no início deste Jerusalém, Simon Sebag Montefiore (n.1965), conhecido principalmente pelo trabalho biográfico sobre Estaline, interroga-se sobre o paradoxo que envolve a cidade: como foi possível a um sítio marginal do ponto de vista económico e estratégico ter-se tornado, e ter permanecido, a capital disputada de uma multiplicidade de imaginários religiosos e políticos? Mais: como foi possível que este papel tenha sido e continue a ser desempenhado pela mesma cidade que, em 1850, Flaubert descreveu como «um ossuário rodeado de muralhas, onde as velhas religiões apodrecem ao sol»? A verdade é que a realidade mais crua foi sempre superada por um lastro histórico e uma tradição cultural que lhe conferiram um estatuto de sacralidade. Ao longo de 3.000 anos, este inscreveu-a, enquanto Cidade Santa de três religiões, no centro das representações e dos interesses de um número indeterminado de humanos. Para estes não se tratava de uma cidade como as outras: ela fora sempre um lugar de espiritualidade e de ação política onde episódios notáveis se sucederam, um lugar por diversas vezes cercado, destruído, partilhado ou simplesmente cortejado por quem dele, real ou simbolicamente, se pretendeu apropriar.
É pois desta cidade única que Montefiore traça a história, mostrando um esforço impressionante de abordagem cronológica dos milhares de episódios e de personagens admiráveis, ou únicos, que foram preenchendo o seu destino. Material não lhe falta, naturalmente. Desde a descrição, por Flávio Josefo, da conquista levada a cabo pelos legionários do imperador Tito, até aos textos contemporâneos, o historiador britânico parece ter lido tudo, mencionando factos e situações da vida quotidiana da cidade, mas também os momentos dramáticos e custosos que jamais deixaram de marcar a sua existência: as guerras, destruições, chacinas, fomes, epidemias que fustigaram a cidade, às quais esta soube sempre resistir sem se deixar aniquilar.
Os factos são valorizados em detrimento da interpretação, mas este é um método, visando afastar as preocupações vividas no presente, que o autor conscientemente escolheu. A escolha torna o livro sedutor para quem o vê como a uma novela cheia de imprevistos, oferecendo ao leitor personagens fortes, heróis ou vilões, atores ou espetadores, que deambulam num cenário urbano aparentemente imutável. É esta imagem linear, associada a uma narrativa ágil, que permitiu a Jonathan Rosen, do New York Times, referir-se à obra como análoga a um western com John Wayne. Mas este é também o ponto no qual se pode encontrar o seu lado frágil. Se a recusa da componente ensaística afastou os problemas de interpretação, libertando o autor da necessidade de tomar partido, essa escolha levou-o também a escamotear um tanto os aspetos relacionados com a ocupação humana do território. Ora, mantendo-se esta como um peso que permanece na atualidade, tal pode ser visto como uma falha, ou como uma forma de tomar partido pelo statu quo que permanece vigente sob a batuta de Israel. Montefiore reconhece, é certo, que Jerusalém «é uma cidade encantadora mas cheia de ódios», embora prefira visivelmente destacar que «ao amanhecer de cada dia, os três principais santuários das três religiões enchem-se de vida, cada um à sua maneira.»
Simon Sebag Montefiore, Jerusalém. A biografia. Trad. de Maria José Figueiredo. Alétheia Editores. 660 págs. Versão revista de nota saída na LER de Maio.