Em 1978, logo após a sua licença para ensinar teologia na Universidade de Tübingen ter sido anulada pelo Vaticano, Hans Küng passou tempos difíceis. Anos depois contou como o afastamento forçado do ensino e da especulação teológica, eixos da sua vida e dos seus interesses durante tanto tempo, o haviam deixado infeliz e deprimido. Mas reagiria rapidamente, tratando de alargar a investigação e a escrita a temas menos «eclesiásticos», vocacionados para a abordagem teórica da ética e do diálogo interreligioso. Com este O princípio de todas as coisas, publicado inicialmente em 2005, irá revelar ainda uma outra preocupação, fazendo coincidir a sua reconhecida erudição com um sentido intenso de abertura à dúvida e às mudanças do mundo, sempre na sua condição de homem de fé. A voga do interesse mediático pelas obras de assumidos ateus, como Christopher Hitchens, Richard Dawlins e Sam Harris, pretendendo excluir essa fé do domínio da ciência pura, levaram-no aqui a seguir justamente o caminho inverso, esforçando-se por aproximar uma da outra.
À questão de saber se fé e ciência podem coexistir, a resposta do teólogo é, como seria de esperar, positiva. A contiguidade que propõe exclui, no entanto, tanto a separação rigorosa das duas esferas quanto a subordinação de uma à outra. Dito por outras palavras: Küng entende que estas não precisam ser harmonizadas, num todo que tudo possa explicar, devendo antes ser utilizadas de forma complementar, para que uma possa sempre iluminar a outra com a sua observação crítica. Em todo o caso, algo lhe parece sempre muito claro: conhecimento ou argumento científico algum possui condições para contradizer a hipótese de uma causa universal última, por si identificada com Deus. Reconhece que a Sua existência é indemonstrável, mas procura provar que sem ela a existência última do cosmos careceria de sentido.
Para aqui chegar, segue um trajeto crítico bastante completo que, partindo de Copérnico, Kepler e Galileu, o leva a passar por Newton e Einstein, pelo princípio da incerteza de Heisenberg e pelo teorema da incompletude de Gödel, pelas conclusões proporcionadas pelas observações do telescópio Hubble e pela teoria do Big Bang. Vai entretanto caminhando por áreas do conhecimento tão diversas como a cosmologia, a astrofísica, a física, a matemática, a biologia molecular, a antropologia e as neurociências, que observa em conexão com exemplos e reflexões importados da história, da filosofia e da teologia, sempre de acordo com a necessidade de evitar fugir aos problemas colocados ao princípio da fé pelo alargamento dos saberes. E quando, no termo do livro, especula sobre a possibilidade de um fim apocalíptico para a existência da humanidade, até aí considera essa possibilidade prática como última hipótese de um (re)encontro do humano com o divino, tomando posição, ao seguir a conhecida aposta de Pascal, «por Deus e Infinito contra Nulo e Nada». Não por um cálculo de probabilidades ou pela lógica matemática, mas, palavras suas, por «uma confiança racional».
Hans Küng, O princípio de todas as coisas. Ciência e Religião. Trad. de Jorge Telles de Menezes. Edições 70. 238 págs. Versão revista de nota saída na LER de Maio.