Posso ser acusado de muita coisa pouco abonatória, mas jamais de não gostar de livros. Desde a escola primária, eles acompanham a maior parte do meu tempo – livre ou ocupado – e desde essa altura que mantenho o hábito de carregar sempre um ou dois, às vezes mais, mesmo que anteveja não poder retirar algum tempo para o(s) ler. Além disso, como professor, investigador e crítico, eles são o meu ganha-pão. Como se tal não bastasse, ainda escrevo alguns e, na condição de impenitente viciado, ao longo dos anos tenho vindo a preencher com eles, cada vez em maior quantidade, a maior parte das divisões das casas que vou habitando. Tendo-me desfeito há pouco, justamente por falta de espaço, de cerca de meia centena, guardo ainda assim umas doze ou treze vezes essa quantidade. Continuando sempre a gostar deles, regressando sempre a eles. Não posso, por isso, ser acusado pelos puristas do papel de não amar os livros, de ir como um tolo atrás das modernices eletrónicas, de ter traído a minha própria biografia, perdendo a fidelidade «ao cheiro, ao toque, à beleza» do livro físico e trocando-o pela tentação do digital.
No entanto, nada disso me impede de conviver com a inevitabilidade de, para as gerações agora a chegarem à universidade, o livro físico ser já, ou tornar-se em breve, um objeto de arquivo, respeitável mas destinado aos especialistas, aos investigadores, aos curiosos, aos colecionadores, mas não ao comum dos cidadãos. Para estes, o conhecimento legado servir-se-á dos suportes que a tecnologia tem vindo a aperfeiçoar ou está a inventar, transformando a forma de ler, de comunicar ou de criar. E isto não é futurologia, como o era ainda quando há cinquenta anos Marshall McLuhan falava do fim da «galáxia de Gutenberg» e há trinta Nicholas Negroponte se entretinha a propor-nos o «paradigma digital». Esta realidade é-me confirmada pelo inventário, que acabo de fazer, dos livros dos quais me tornei feliz proprietário durante os últimos dois anos: sem contar com jornais e revistas, comprei 34 livros tradicionais, em átomos, foram-me ainda oferecidos (a larga maioria por autores ou editores) 57, e comprei… 67 e-books, contando-se entre estes aqueles mais atualizados e diretamente relacionados com o trabalho profissional e os meus interesses diários. Afinal já cheguei ao «futuro previsível», esse que para alguns será «impossível», «jamais acontecerá». E ainda não tinha dado completamente conta disso.