O post que escrevi ontem a propósito da morte de José Hermano Saraiva destacou aspetos que se completam no que representou a sua vida como homem público: a enorme popularidade que colhia como comunicador, a forma como a maioria dos historiadores o não considerava um dos seus, a maneira como ainda assim contribuiu para uma valorização popular da História, sem esquecer o percurso como quadro do Estado Novo e defensor do legado de Salazar. Ficou no entanto por comentar um aspeto importante: o que determinou uma popularidade tão grande que agora, na hora do seu desaparecimento, tantas pessoas que não serão propriamente adeptas do anterior regime se indispõem com as críticas, mais do que legítimas, mais do que necessárias, que lhe são feitas?
Refiro um episódio que me foi narrado por X., também ele historiador e figura pública. Encontrava-se ambos, JHS e X. numa tipografia, por causa da edição de livros nos quais colaboravam, quando tocou o telemóvel do primeiro. Este atendeu e de repente, tapando o microfone, disse isto: «Ouça lá, ó X., como hoje é Dia dos Namorados os tipos da rádio querem que eu fale em direto sobre a efeméride, mas eu não percebo patavina do tema. Você sabe alguma coisa sobre a origem do São Valentim?» «Eu também não sei nada, rigorosamente nada!», respondeu X. Ao que JHS retorquiu: «Deixe lá, eu trato do assunto!» E começou imediatamente um arrazoado de longos minutos que deixou X. chocado com a ligeireza mas admirado com a verve. Começava assim: «Naquele tempo, viviam na Antiga Roma dois belos enamorados…», e por ali afora, com a capacidade inventiva e enfática que se reconhecia ao professor. Muito provavelmente já a ser seguido por milhares de fascinados ouvintes que julgavam seguir em direto a voz autorizada do passado.
Este episódio destaca a capacidade de retórica e de efabulação que está na origem da enorme popularidade de JHS. Tinha um dom particular para a produção do romanesco, do maravilhoso e do quimérico do qual todos precisamos para nos sentirmos um pouco melhor com a vida. Muitos procuram obtê-lo através dos livros, do cinema, da viagem, mas a maioria contenta-se com uma história bem contada. E isso JHS sabia fazer muito bem. À sua maneira, claro: com a sua linguagem e os seus valores, sob uma perspetiva conservadora e respeitadora das hierarquias, sobretudo quando esta era facilmente enobrecida pela poeira do tempo. Mas fazia-o sem desfalecimento, com uma maestria fora do comum. E sabem que mais: muitas vezes, mesmo sabendo que tudo aquilo era inverosímil, inventado, delirante, marcado por uma conceção do passado que estava em condições de criticar, me deixei ficar preso à televisão, ouvindo aquelas fábulas como quem seguia um romance de aventuras. Todos gostamos que nos mintam se a mentira nos ajudar a romancear a vida. Se por instantes ela for o nosso ópio. Ainda que depois possamos acordar com uma valente dor de cabeça.