A dimensão e as características dos protestos deste 15 de Setembro terão sido uma surpresa, tanto para os governantes quanto para os partidos do chamado arco da governação. E mesmo para os próprios organizadores, que só tinham as adesões no Facebook como indicador. A surpresa começou pelo número esmagador de manifestantes que foram para a rua, em tantos e tão diversos locais, somando perto do milhão. Falamos, repare-se bem, de 10% da população em protesto contra a ingerência da troika em Portugal, contra a vertigem insana da austeridade sem horizonte assumida pelo governo, e contra a proposta injusta e desumana de uma Taxa Social Única que traduziria uma política de terra queimada. Foi esta, aliás, a gota que fez transbordar o copo.
Pudemos então ver como na verdade o «povo sereno», supostamente passivo, estava afinal a ser sobretudo paciente e prudente. Só que quando os limites do aceitável foram ultrapassados, a paciência esgotou-se e todos perceberam o caráter suicidário da excessiva prudência. As ruas encheram-se então, numa sucessão de manifestações com uma dimensão de autenticidade e de unidade muito raramente vistas nestas situações. Poucos dos que vieram sabiam exatamente o que queriam, mas reconheceram muito bem aquilo que já não podiam suportar. Foi essa dimensão de protesto que justificou a espontaneidade dos desfiles, a aceitação da pluralidade política que os caracterizou, a diversidade e a criatividade dos cartazes e das palavras de ordem que foram utilizados. E foi ela também que tornou memoráveis estes desfiles. Não por acaso, muitos dos mais velhos compararam-nos sem pestanejar aos do primeiro 1º de Maio da democracia.
Mas foi visível também, e esta foi outra surpresa, a perceção partilhada de que o combate não iria acabar ali. A palavra de ordem mais ouvida, a mais gritada em todas as cidades, foi recuperada de dois momentos de esperança: «o povo unido jamais será vencido» servira de agregador, no Chile de Salvador Allende e no nosso pós-25 de Abril, a processos de esperança e de mudança que esses momentos materializaram. E no sábado, quase intuitivamente, muitos o perceberam. Percetível ainda foi a perceção de que entrámos numa fase sem retorno à vista ou mesmo possível. Os governantes não serão mais os mesmos, os partidos não poderão comportar-se da mesma forma, os cidadãos têm outras exigências e atitudes, não aceitando já – pelo menos assim é de esperar – ser conduzidos por líderes providenciais.
Entretanto o combate social terá de avançar. Passando da fase do protesto para outra, mais difícil, provavelmente menos consensual, que será a da procura e da afirmação de soluções de governo e de governabilidade. É nela que entrámos agora e será nela que estaremos também nas manifestações convocadas para o dia 29 pela CGTP. Aí surgirão outras estratégias, assomarão vozes e organizações mais identificadas, mas seja qual for o caminho tomado nenhuma delas pode ignorar a vontade de mudança, de renovação e de democracia, no sentido da participação plena, que este 15 de Setembro sintetizou. Temos por isso de nos reinventar, de reinventar o combate político, de construir aproximações, e de compreender que foi a diversidade, o reconhecimento de atitudes plurais incompatíveis com «serviços de ordem» e slogans previsíveis, a voz tomada na rua por quem tenha algo a reivindicar em complemento da democracia representativa de base partidária, que produziu o momento inesquecível, comovente e mobilizador de sábado passado. Assim deverá continuar a acontecer.