Viajo no tempo e tento concentrar-me na época em que deixei a Igreja católica apostólica romana. Até à altura em que as dúvidas apareceram, tinha sido um fiel convicto, praticante, tão seguro da minha crença e dos seus dogmas que cheguei uma vez a zangar-me com os meus pais por estes se afirmarem católicos e não frequentarem a Santa Missa. Aos 14, porém, comecei a sentir-me desconfortável e rapidamente encontrei duas razões para me afastar dos rituais, primeiro, e depois da fé. A primeira razão teve a ver com a recusa de uma retórica oca, repetitiva e indecifrável que nada me segredava: as prédicas aborrecidas que se limitavam a frase feitas sobre «o fim dos tempos» que eu não conseguia vislumbrar que coisa fossem, sobre uma «Salvação» que não percebia do que me iria afinal salvar e sobre o Espírito Santo, chamado de «Paráclito» sem que ninguém me explicasse que esta era a palavra grega para «consolador», enchiam-me de tédio. E, pior, nada tinham a ver com as letras das canções dos Rolling Stones, que acima de tudo adorava.
A segunda razão, mais forte, relacionou-se com o aparecimento, em plena crise da adolescência, do esboço de uma consciência política democrática: nada me dizia agora um discurso que não falava com clareza de pessoas reais, mas antes de seres tendencialmente angélicos, ou irrevogavelmente tomados pelo Demo, cuja essência se realizaria apenas depois da morte, e que omitia, pelo menos na versão que eu conhecia, a dureza da vida operária, a miséria dos lares sem pão, a guerra próxima-distante que parecia não ter fim. E por isso, muito antes de ler alguns parágrafos de Kant, Voltaire, Feuerbach ou Marx, deixei de frequentar a Igreja e me transmutei no increu, e depois no agnóstico, que permaneci até hoje. As palavras do Cardeal José Policarpo sobre as virtudes de uma felicidade protelada e o seu elogio da cega e pacífica obediência a uma ordem injusta fizeram-me relembrar essa escolha. E levaram-me a pensar nos crentes de agora, aos quais Sua Eminência acaba de recusar uma palavra de esperança. Deus lhe perdoe que eu, com muita franqueza, tenho dificuldade em fazê-lo.