É verdade que depois da instituição do regime democrático em Portugal o direito à greve nem sempre foi usado da melhor forma. Ao contrário do que acontecia durante o Estado Novo, quando a repressão policial transformava qualquer ato grevista num gesto heroico, utilizado com elevados riscos pessoais apenas em situações dramáticas, a partir dessa altura de viragem ele transformou-se numa escolha frequente, quase rotineira, à qual se recorria muitas vezes como a primeira e não apenas como a mais extrema e avançada das formas legais de protesto e de reivindicação. Por isso se banalizou e transformou por vezes, nas décadas mais próximas, numa escolha que nem sempre congregava já o apoio da maioria dos trabalhadores que supostamente deveria reunir. E por isso também algumas foram as greves convocadas nas quais deveria participar e de cuja convocatória discordei. Ainda assim, e digo-o com uma ponta de democrático orgulho, sem jamais ter furado uma que fosse.
Porquê? Talvez por ter formado a noção pessoal de cidadania numa tradição republicana, combativa e solidária, que considerava o fura-greves, o «amarelo», como um sujeito desprezível, que pouco ou nada se importava com os outros mas ainda assim lucrava por vezes com o seu sacrifício. A literatura e o cinema politicamente engajados, com uns pós de Rosa Luxemburgo à mistura, ajudaram-me, aliás, a ampliar essa imagem. No entanto aceitei sempre, de maneira democrática e sem rancor, que nessas condições muitos escolhessem não aderir. Nas circunstâncias atuais, porém, porque os campos se estremaram e o limite da resistência dos cidadãos foi atingido, é preciso marcar de novo de que lado se está. Uma greve é sempre um gesto coletivo grave, com custos para toda a gente, e não pode ser usada com leviandade. Mas quando a via se estreita não podemos esquecer que há uma linha vermelha de demarcação separando quem combate uma ordem injusta e quem, por cobardia, omissão ou escolha deliberada, com ela colabora. Infelizmente o tempo da indiferença está a acabar. Porque ela está a deixar de ser possível.