A LER propôs-me para o número de Novembro que destacasse 25 livros de autores portugueses de diferentes géneros publicados ao longo dos últimos 25 anos. Precisamente aqueles que a revista mensal do Círculo de Leitores leva de vida. Eis a minha resposta ao desafio.
Encontrar 25 títulos portugueses que tenham deixado uma marca visível nos meus últimos 25 anos de vida de leitor não foi fácil. Vivendo dos livros, em longas temporadas para eles, custa um tanto, e pode ser um exercício de injustiça, escolher uns porque supostamente são melhores que outros. A solução foi encontrar um critério suficientemente amplo, maleável, mas ao mesmo tempo razoavelmente objetivo, que me deixasse fazer a escolha, sem com ela, ao excluir obras que li com prazer e sublinhei com proveito, sentir que estava a ser arbitrário. Separei assim alguns livros – sempre mais obras do que autores – que em algum momento determinaram um salto na perceção de interpretações, de tempos, de narrativas, de géneros que eles ajudaram a descobrir ou a ver de outro modo.
Começo pela poesia, sempre mais difícil de fixar como passaporte ou influência. Escolhi duas compilações: O Medo, de Al Berto, e os Poemas Completos, de Alexandre O’Neill. O primeiro porque projetou uma fala, uma sensibilidade e um trajeto singulares entre os nossos poetas; o segundo porque me devolveu a voz lúdica e irónica que a dada altura perdera. Já no romance destaco Alexandra Alpha, de José Cardoso Pires, oferecendo um discurso original sobre a vida secreta e fastidiosa da fauna intelectual lisboeta dos anos 60 ao imediato pós-Abril; O Pequeno Mundo, de Luísa Costa Gomes, sobre a possibilidade de discursos diferentes em volta de uma mesma realidade engendrarem realidades alternativas (excelente exercício para quem veja na escrita a impressão da verdade); e O Esplendor de Portugal, de António Lobo Antunes, uma das primeiras obras de ficção sobre a «glória do Portugal colonial» e a nostalgia de África a mostrar-se imune à lógica do ajuste de contas. Mas também Glória, de Vasco Pulido Valente, romance construído a partir do percurso real de um crápula e oportunista, apresentado pelo autor como modelar da dimensão narrativa da História; e Longe de Manaus, de Francisco José Viegas, uma novela de viragem na tradição portuguesa recente do policial. Junto ainda dois títulos, que só poderiam ter sido escritos por mulheres, nos quais a ficção em torno da presença portuguesa em África e do seu final dramático foi elevada a um plano que exclui de cena os heróis e os mártires: o Caderno de Memórias Coloniais, de Isabela Figueiredo, e O Retorno, de Dulce Maria Cardoso.
No ensaio, retenho uma das obras essenciais de Boaventura de Sousa Santos, Pela Mão de Alice, que há quase vinte anos lançou em Portugal o debate e a reflexão sobre a aproximação entre o social e o político na então chamada pós-modernidade. Destaco também um texto curto que teve o mérito de, quase três décadas após os trabalhos de Eduardo Lourenço, relançar o debate público sobre a condição e os males do «ser português»: Portugal Hoje. O medo de existir, de José Gil. Tendo passado quase despercebido, já Grandeza de Marx. Por uma política do impossível, de Sousa Dias, justifica o destaque pela forma como propõe um elogio antidogmático do ainda dogmatizado filósofo. No domínio da história quatro obras a reter, numa escolha que pode ser particularmente injusta, dado o volume de trabalhos publicados neste campo: a História de Portugal, dirigida por José Mattoso, desigual na organização dos diversos volumes mas que reformulou completamente o género; Álvaro Cunhal. Uma biografia política, de José Pacheco Pereira, e Comunismo e Nacionalismo em Portugal, de José Neves, por proporem uma revisitação fundada e, apesar de escrita a partir «de fora», respeitadora da história e do papel na luta contra a ditadura salazarista protagonizada pelo Partido Comunista Português; e ainda O Pequeno Livro do Grande Terramoto, de Rui Tavares, onde se entrega ao leitor comum uma narrativa pedagógica sobre as circunstâncias e os efeitos dos acontecimentos do 1º de novembro de 1755. Lateralmente, Memória das Guerras Coloniais, do jornalista João Paulo Guerra, foi um livro pioneiro no registo documental da «história imediata».
A literatura de viagens foi durante muito tempo estranhamente escassa na relação com o número de portugueses em trânsito pelo mundo. No entanto, nos últimos anos o défice foi reduzido. Em formatos e registos diferenciados, mas que podem associar-se ao género, separei três obras saborosas: Sul, de Miguel Sousa Tavares; Baía dos Tigres, de Pedro Rosa Mendes; e Périplo, de Miguel Portas e Camilo Azevedo. Juntei ainda outros livros que, não se integrando em qualquer dos grupos, não merecem ser esquecidas. Desde logo, dois volumes autobiográficos sobre o exílio, físico ou interior, dos intelectuais portugueses na fase derrapante do Estado Novo: Século Passado, de Jorge Silva Melo, diário irregular de um não-alinhado, e Montparnasse. Até ao esgotamento das horas, a revisitação ampliada de um livro mais antigo de Vasco de Castro. Acrescento Feminismos: percursos e desafios, onde Manuela Tavares apresenta aquele que é o primeiro levantamento sistemático da história e da memória da luta emancipatória das mulheres portuguesas. Igualmente Por Outras palavras & mais crónicas de jornal, de Manuel António Pina, para além do mais, também um dos nossos melhores cronistas. E por fim, sem com o lugar desmerecer o género, A Pior Banda do Mundo, uma série de banda desenhada, tão portuguesa quanto cosmopolita, da autoria de José Carlos Fernandes, aparentemente em suspenso mas da qual seria muito bom termos notícias frescas. Claro que seria sempre possível voltar ao início e trocar todos os títulos. E repeti-lo.
A lista:
- Alexandra Alpha – José Cardoso Pires, Dom Quixote, 1987.
- O Pequeno Mundo – Luísa Costa Gomes, quetzal, 1988.
- O Medo – Al Berto, Assírio & Alvim, 1991.
- História de Portugal – José Mattoso, dir., Círculo de Leitores, 1993-1995.
- Pela Mão de Alice – Boaventura de Sousa Santos, Afrontamento, 1994.
- Memória das Guerras Coloniais – João Paulo Guerra, Afrontamento, 1994.
- O Esplendor de Portugal – António Lobo Antunes, Dom Quixote, 1997.
- Sul – Miguel Sousa Tavares, Relógio d’Água, 1998.
- Álvaro Cunhal. Uma biografia política – José Pacheco Pereira, Temas & Debates, 1999-2005.
- Baía dos Tigres – Pedro Rosa Mendes, Dom Quixote, 1999.
- Poemas Completos – Alexandre O’Neill, Assírio & Alvim, 2000.
- Glória – Vasco Pulido Valente, Gótica, 2001.
- A Pior Banda do Mundo – José Carlos Fernandes, Devir, 2002-2007.
- O Pequeno Livro do Grande Terramoto – Rui Tavares, Tinta-da-China, 2005.
- Longe de Manaus – Francisco José Viegas, ASA, 2005.
- Portugal Hoje. O medo de existir – José Gil, Relógio d’Água, 2005.
- Século Passado – Jorge Silva Melo, Cotovia, 2007.
- Montparnasse. Até ao esgotamento das horas – Vasco de Castro, Campo das Letras, 2008.
- Comunismo e Nacionalismo em Portugal – José Neves, Tinta-da-China, 2008.
- Périplo – Miguel Portas e Camilo Azevedo, Almedina, 2009.
- Caderno de Memórias Coloniais – Isabela Figueiredo, Angelus Novus, 2009.
- Por outras palavras & mais crónicas de jornal – Manuel António Pina, Modo de Ler, 2010.
- O Retorno – Dulce Maria Cardoso, Tinta-da-China, 2011.
- Feminismos: Percursos e desafios – Manuela Tavares, Texto, 2011.
- Grandeza de Marx. Por uma política do impossível – Sousa Dias, Assírio & Alvim, 2011.