O mundo concebido de acordo com a ordem americana, que prevaleceu a partir de 1945 e saiu reforçado do termo abrupto da Guerra Fria, encontra-se em declínio. Aparentemente, tudo aconteceu com enorme rapidez. Pela viragem do milénio ainda era possível – os conselheiros de George W. Bush cultivaram tal ideia no início do seu primeiro mandato – conceber os Estados Unidos da América como «hiperpotência», e, desmembrada a União Soviética, falar de «unipolaridade» para descrever o que parecia ser uma nova e única forma de poder, projetada à escala mundial com sede declarada em Washington. Na sequência do 11 de Setembro de 2001, a imposição da segurança global através de uma pax americana parecia em andamento. O que pretende demonstrar Quando a China mandar no mundo, do jornalista e académico britânico Martin Jacques, é que esta ideia representou um logro e que, na verdade, estamos a viver uma mudança histórica apenas iniciada mas já destinada a transformar irreversivelmente o planeta. Dela derivará uma nova ordem, tendo a China como eixo do poder económico, da força militar e, provavelmente, do equilíbrio político internacional.
Porém, para Jacques esta nova ordem não resulta apenas de uma mudança de centro. Ao recordar que «estamos tão habituados a que o mundo seja ocidental, mesmo americano, que não fazemos ideia do que seria o mundo se não fosse americano», pretende deixar claro que a metamorfose em curso vai alterar radicalmente os paradigmas e os caminhos do mundo contemporâneo, fazendo nascer uma realidade totalmente outra. Instituições, valores, costumes e crenças ao «estilo ocidental», tais como «o Estado de direito, o mercado livre e as normas democráticas» irão então, de acordo com a sua leitura, ser abolidas ou confinadas a espaços restritos, enquanto a China surgirá como poder hegemónico capaz de impor um modelo de desenvolvimento e um sistema internacional inteiramente diversos. Aquilo que esta obra procura detalhar, a partir das suas origens históricas e da sua evolução, são as razões políticas que, a par da pujança económica, produzirão essa nova paisagem.
Martin Jacques destaca quatro: o facto de a China não ser um Estado-nação mas uma unidade política cimentada ao longo de milénios de história; a existência de uma identidade comum capaz de superar as dificuldades que poderiam ser levantadas pela diversidade étnica; a organização de um poder milenarmente assente numa base tributária, imposta à população chinesa e à dos Estados e áreas sob a órbita de Pequim; e as dimensões colossais da geografia e da demografia da China, determinando um conjunto de efeitos e de possibilidades que o monolitismo político, na sua dimensão autoritária, acabará por ampliar.
Não sendo inteiramente negada, esta capacidade de injunção de um modelo político autónomo tem, no entanto, sido contestada nas suas formas. O historiador Niall Ferguson, por exemplo, contesta a enunciação destes fatores como elementos capazes de darem corpo a um padrão de desenvolvimento diferente, lembrando que outros sinólogos tendem a considerar uma evolução da China no sentido da relativa «ocidentalização», se é que o termo se aplica ainda à ordem global existente. Noutra direção, o jornalista Will Hutton anota que a leitura de Jacques tende a negar os efeitos do processo subterrâneo de democratização económica (e mesmo política) que o gigante asiático se encontra a viver. Em qualquer dos casos, a leitura deste grosso volume oferece-nos uma importante dose de informação para avaliarmos de forma mais sustentada as diferentes possibilidades em presença. Sem sentirmos medo mas também sem ficarmos sossegados.
Martin Jacques, Quando a China mandar no mundo. Trad. de Pedro Vidal. Temas & Debates – Círculo de Leitores. 822 págs. Versão revista de nota saída na LER de Novembro.