Em reportagem publicada no Diário de Notícias a propósito do início do XIX Congresso do PCP, a jornalista Fernanda Câncio descreve uma parte do que ouviu a alguns novos militantes para explicarem a sua adesão. Numa curta frase – «acredito que a política que o PC defende pode restituir sonhos» – um deles terá realçado, provavelmente sem de tal se aperceber, aquela que continua a ser a essência da capacidade de atração do partido: o lugar que este mantém, reforçado agora em contexto de crise económica, social e moral, como espaço partilhado de crença, capaz de projetar na vida de muitas pessoas uma dimensão de esperança. Como uma experiência de resistência, de trincheira, da qual se espera partir um dia à conquista da Terra Prometida da justiça e da igualdade. No entanto, pouco parece importar, à generalidade dos entrevistados, o conceito de democracia que deve ser aplicado a esse futuro: parte-se do princípio de acordo com o qual esta em que vivemos é má, é «falsa», para alguns «burguesa», e outras experiências, com uma base histórica que julgam «ao serviço dos trabalhadores» – a da antiga União Soviética e dos Estados «do socialismo realmente existente», a da China, a de Cuba e, pasme-se, por vezes a da própria Coreia do Norte – estarão bem mais próximas daquela que pode ser a boa, a «verdadeira». Aquela pela qual vale a pena lutar.
Não será no entanto por isso que esta amálgama por vezes contraditória de referências e de convicções deva ser menosprezada. Pelo contrário, ela comporta um potencial de combate pela justiça social que, pelo que representa de profundo anseio coletivo, precisa ser respeitado. Independentemente dos falhanços históricos, ou mesmo da monstruosidade comprovada de algumas experiências, que alguns militantes teimam em não reconhecer, ou em preferirem «não saber», como acontece, por exemplo, com a forma como continuam a encarar, ou a negar, a perversão burocrática, o estalinismo e o próprio Gulag. A verdade é que no PCP, menos monolítico aliás do que pensam alguns, continua a ocorrer uma contradição profunda entre a base histórica e moral de luta pela liberdade e pela justiça social, e atitudes orgânicas, comportamentais e programáticas que de facto a contrariam. O tema levar-nos-ia muito longe, pelo que me limito a dois dos problemas que o integram, talvez os centrais, cuja resolução permitiria superar esse défice de democracia e dinamizar o partido para o combate por um futuro democrático e mais justo.
O primeiro problema prende-se com a necessidade de superação do sectarismo. Comprovado não só pela tentativa diária de férreo controlo político – os comunistas chamar-lhe-ão, «de direção» – dos movimentos sociais, das organizações sindicais e das instituições nos quais têm um lugar importante, mas também pela atitude em relação ao Partido Socialista e ao Bloco de Esquerda, basicamente tratados como inimigos «social-democratas» (uma condição com uma história respeitável no movimento operário até que, como se sabe, Lenine a demonizou para fundar a estratégia bolchevique), em vez de serem tomados como estratégicos aliados. A Resolução política proposta ao Congresso tranca as portas a qualquer compromisso ao considerar o PS, um «partido da política de direita, mascarado com um discurso de ‘esquerda’ para iludir os muitos milhares de eleitores socialistas», supostamente confinado a uma «linha colaboracionista com o atual Governo». Ao mesmo tempo, considera que o Bloco tem «um percurso determinado pelo seu caráter social-democratizante, marcado por um assumido federalismo e por uma aproximação ao PS», além de protagonizar um «discurso sobre a ‘esquerda grande’ ou ‘esquerda moderna’» que testemunha, segundo diz, «uma intervenção sectária e de uma inaceitável arrogância e indisfarçável disputa com o PCP». Aliás, também as organizações e movimentos que integram milhares de cidadãos sem partido parecem passar ao lado das preocupações com a unidade. Tudo isto por troca com a idealização de uma solução política integrando «democratas» e «patriotas» que, perante tais exclusões, ninguém sabe bem onde se encontram nem quem representam. A superação destas desconfianças – que não excluiria, naturalmente, o direito a uma vigilância crítica – só poderá ampliar a força mobilizadora do PCP e a sua capacidade para participar num processo de mudança de política com uma perspetiva à vista.
Já o segundo problema é mais fácil de nomear, apesar de ser difícil de resolver: a incapacidade, que deve ser superada, de o PCP passar de partido de protesto e de resistência, do «contra», a partido com um projeto claro e detalhado de governabilidade, um partido do «por», capaz de apontar uma saída dinâmica e positiva para a gestão da coisa pública, partilhada com outras forças e politicamente credível, na qual a maioria dos cidadãos possa confiar sem medos. E lutando convictamente por ela. Com a resolução destes dois problemas, fatores de desconfiança e de discórdia, o PCP e todos aqueles que representa só teriam com toda a certeza a ganhar. E, com eles, a maioria dos portugueses ganharia também uma outra possibilidade de futuro. Mas provavelmente, e apesar das acelerações da História que de vez em quando acontecem, ainda vamos ter de esperar algum tempo mais para que tal possa acontecer. Assumamos no entanto, também nós, uma boa dose de crença e de esperança: ela acontecerá um dia. Tem de acontecer. O mais rapidamente possível e, sem dúvida, com um PCP mais ágil, dialogante e democrático a bordo.