Por estes dias em que permanecer indiferente, calar-se bem calado e fazer de conta que não é connosco, desinteressar-se do drama comum que estamos a viver, da política consciente e sistemática de destruição de um princípio de solidariedade que levou mais de um século a erguer, da ausência de uma ideia de esperança e de futuro para os mais jovens, do destino dos que trabalharam durante décadas para agora viverem no temor da miséria, da fome de quem nunca a tinha sentido e de mais fome ainda para quem já sabia que coisa era viver com quase nada, representa, cada vez mais, um ato deliberado de colaboração com o crime. A História mostra-nos, vezes sem conta, como foi fácil virar a cara para o lado oposto e deixar, por inação, que o pior acontecesse. Por ignorância, cobardia ou estupidez. Ou oportunismo. Ou, pior, por isso tudo e ainda por se assumir a convicção de que existe algures uma figura providencial à espreita, capaz de pôr todas as coisas «no sítio» e de instaurar um tempo de tranquilidade que assistirá à recomposição da «ordem natural» da existência humana. Com os mais ágeis a viverem a sua vida boa e higiénica – laborando, orando, amando os pobrezinhos – e os outros, à distância, a pedirem pares de peúgas, camisolas com defeito, latas de atum ou sopa de grão. E, por isso, que não é pouco, a ficarem atentos, veneradores e obrigados. Quietos e apáticos no seu lugar de escravos. Ou então de auxiliares de quem manda, anjos decaídos de uma ordem que ultrapassa o humano porque emanada de entidades transcendentes. Como Deus – um deus castigador, é suposto – ou a mecânica sobrenatural dos mercados financeiros.