Almanaque

Leitura Furiosa

De fio a pavio. A expressão caiu em desuso, mas foi assim – no todo e a fundo, com muita surpresa e algum entusiasmo – que, durante duas semanas de um Agosto do princípio deste século, li de enfiada os dezoito números (e um suplemento) da revista Almanaque que saíram entre Outubro de 59 e Maio de 61. A nota de abertura do primeiro número não enganava:

«Este Almanaque (…) vem ao gosto moderno, segundo a linha 1959, trata por tu o teatro de Beckett e Ionesco, os escritores da Beat Generation, os Pat Boone ou os Georges Brassens, os íntimos de Françoise Hardy e as verdadeiras causas do caso Pasternak. Só não conhece os segredos dos painéis de Nuno Gonçalves, mas há-de chegar lá um dia.»

No número 2, o tom mantinha-se, sublinhando-se a intenção de contrariar o salazarista «viver habitualmente» e olhar o mundo para além dos monótonos postos fronteiriços de Quintanilha ou Vilar Formoso:

«Bem se ralavam os nossos trisavós com terem ou não terem morrido mil pessoas nas inundações da Manchúria ou ter mudado de coronel a presidência da Bolívia. Nós não. Logo de manhã começamos a preocupar-nos com coisas que rigorosamente não nos dizem respeito. Que o Sultão de Alahabar tem trezentas mulheres, que em Munique uma velha bebeu por aposta cem litros de cerveja e morreu. E temos pena do Sultão, e temos inveja da velha.»

«O programa da revista era simples» – dirá José Cardoso Pires, um dos seus fundadores, em entrevista ao Século Ilustrado – procurando-se principalmente «ridicularizar os provincianismos, cosmopolitizados ou não, sacudir os bonzos contentinhos e demonstrar que a austeridade é a capa do medo e da falta de imaginação». O anseio de universal que transparecia das páginas da revista – com uma profusão de temas e citações e uma ousadia gráfica que chegaram a ser tomadas, à esquerda e à direita, como expressão de afectação – não se limitava pois a vagas intenções, distribuindo-se por secções e artigos nos quais era uma constante a aproximação a outras realidades e maneiras de estar no mundo. Reportagens mensais sobre países e povos considerados exóticos (Afeganistão, Israel, Saara, Pérsia, Polónia, os índios americanos, os esquimós), artigos sobre a forma como se divertiam os habitantes de Londres, Tóquio ou Nova Iorque, pequenos textos sobre filósofos ou rockers contemporâneos (sem grande distinção formal entre as duas categorias de gente), uma secção («As latitudes da felicidade») que procurava fazer um retrato da psicologia e das formas de vida das jovens mulheres da Suécia, de Inglaterra, dos Estados Unidos, da Alemanha, de França ou da Itália.

E ainda, tal como um verdadeiro almanaque – lembra-o agora Maria Antónia Oliveira num passo da recentíssima biografia literária de Alexandre O’Neill (outro dos fundadores, ao qual se devem juntar, para além de Cardoso Pires, Luís de Sttau Monteiro, Augusto Abelaira, José Cutileiro, João Abel Manta, Baptista-Bastos e o jovem Vasco Pulido Valente) –, com «muitas fotos, desenhos, artigos frívolos, astrologia, receitas, anedotas, artigos sobre actores de cinema, curiosidades, críticas de discos e de filmes, floricultura» e outras prosas consideradas mais sérias. Uma «espécie de magazine» bastante enviesado, num tempo em que eles eram mais que raros e absolutamente necessários.

Publicado originalmente em Passado/Presente
Fotografia de Eduardo Gageiro, retirada de um dos números da Almanaque

    História.