Mais de setenta anos após a sua morte, o percurso pessoal, político e intelectual de George Orwell permanece objeto de um escrutínio atravessado ao mesmo tempo pelo aplauso e pelo ódio. No entanto, se o primeiro, associado à sua denúncia militante da desigualdade social, do imperialismo e do totalitarismo como os males capitais do seu tempo, encontrou sempre momentos de reconhecimento público e outros nos quais pareceu confinado apenas a uns quantos admiradores, o segundo estabeleceu-se como uma constante, com uma intensidade que parece até, apesar dos múltiplos esforços de impugnação, ter-se inflamado mais após a morte do escritor. Aquilo que Christopher Hitchens (1949-2011) se propôs fazer neste A vitória de Orwell, escrito há já cerca de uma década mas tão brilhante que resistiu a esta frágil tradução portuguesa, foi olhar para a avalanche de rancor e, de forma sustentada e sagaz, desmontar os mais insistentes argumentos adversos ao escritor, desancando alguns dos seus intérpretes. O que não é de admirar vindo de quem, como aconteceu com Hitchens, foi objeto de comparáveis vilipêndios e incompreensões.
A intenção de polemizar, mas também de fazer pedagogia, apoiou-se aqui numa identificação de «áreas de conflito» com as quais tanto a vida quanto a posteridade de Orwell se viram confrontadas. A primeira respeita às suas posições sobre as características do imperialismo britânico, mostrando de que forma, contrariamente ao por vezes apregoado, elas sempre foram de aversão e resistência. A segunda refere-se ao posicionamento do autor britânico como homem de esquerda, refutando-se os críticos – alguns próximos de nós, como Edward Saïd ou Salman Rushdie – que viram no seu combate precoce contra o estalinismo, ou na sua defesa de valores tomados como universais, um modo de pactuar com o fascismo e o colonialismo, «fornecendo munições ao inimigo». A terceira toca a sua luta de toda a vida contra a direita e um combate post-mortem contra aqueles que no contexto da «Guerra Fria» – um conceito, recorde-se, inventado pelo próprio Orwell – se serviram de parte da sua obra, sobretudo dos romances tardios Animal Farm e 1984, subvertendo-a e usando-a como munição contra os ideais socialistas. A quarta área questiona leituras críticas do seu olhar distanciado sobre a América, que conheceu mal apesar da admiração por Paine e Jefferson e de um projeto de viagem jamais completado, sendo este desconhecimento o motivo pelo qual se recusou a aprofundar o assunto. A quinta aborda o tema da «anglicidade», da qual, ao contrário do que proclamam também os seus detratores, desconfiava profundamente. A sexta diz respeito às suas supostas posições de natureza misógina e homofóbica, que Hitchens vivamente contesta. E a sétima área debate a suposta «lista» de pessoas, simpatizantes do estalinismo e agentes da supremacia soviética sobre a esquerda, que, no final da vida, Orwell teria fornecido aos serviços secretos britânicos, mostrando o jornalista e crítico, como já outros fizeram, que se trata de uma completa difamação.
Do conjunto sobressai, justificando a metáfora militar que o título comporta, um olhar muito positivo, quase heroico mesmo, sobre as disputas de Orwell, procurando apresentá-lo como um vencedor póstumo, e absolutamente categórico, de todas elas. Como um defensor incansável dos valores humanos da «razoabilidade» e da «decência», assim como do direito do intelectual ao testemunho, erguidos contra a contemporização com os pesados crimes que outros escritores do seu tempo, companheiros de viagem do totalitarismo – esse que jocosamente denomina de pinks –, adotaram em nome do fascismo ou então do estalinismo. Um livro repleto de sabedoria, que recorrendo às fontes e suprimindo os preconceitos só não reabilita Orwell aos olhos de quem o ler mesmo de má-fé.
Christopher Hitchens, A vitória de Orwell. Trad. de Vasco Gato. Verbo. 192 págs. Versão revista de artigo publicado na LER de Dezembro de 2012.