Existe um equívoco, partilhado por muitas pessoas que têm o cuidado de separar o antissemitismo do antissionismo, fundado na ideia errada de acordo com a qual o sionismo foi e é, da base ao topo, sempre agressivo, expansionista e basicamente de direita. Como se sabe, a explicação mais simples aponta o antissemitismo como preconceito ou hostilidade contra os judeus, fundado no ódio contra a sua identidade histórica, étnica, cultural e religiosa. Esta é uma tendência que uma grande parte da esquerda sempre recusou ou continua a recusar, ainda que, na prática, a sua vertente mais dogmática com ela tenha pactuado ou continue muitas vezes a pactuar. Por sua vez, o antissionismo prevê uma oposição frontal ao direito do povo judeu à autodeterminação e à existência de um Estado nacional judaico independente e soberano. Simplificando: um grande número de bons cidadãos e de consciências democráticas admite que os judeus não devem ser perseguidos pelo facto de o serem, mas, sendo-o e vivendo no único estado judaico existente, devem tratar de empacotar os haveres e tornar à errância, devolvendo a integralidade do território àqueles, palestinianos principalmente, que dele foram espoliados quando do processo que conduziu à independência e depois, pela via da guerra e dos colonatos, à expansão territorial de Israel. O antissionismo alimenta assim o antissemitismo.
No entanto, a história ensina-nos que um grande número dos judeus que afluíram ao território do antigo reino de Israel que em 1948 declarou a sua independência, o fizeram, em boa parte, porque tendo sobrevivido ao Holocausto haviam perdido para sempre os seus bens, modos de vida, raízes familiares e até espaço para se manterem nos locais que habitavam, tendo de procurar um lar. Ou então porque, associados a movimentos e organizações sionistas de esquerda, pretendiam criar ali um oásis de segurança, liberdade, tolerância e prosperidade fundado numa experiência utópica e coletivista de inspiração socialista. Aliás, para boa parte da juventude ocidental afeta à esquerda dos anos 1950-1960, integrar um kibutz e assim participar num certo modelo de vida igualitário e num imaginado pioneirismo desbravador tornou-se aliciante e, mesmo para quem não era judeu, foi uma experiência, ou pelo menos um devaneio, muito comum. Convém lembrar que nessa altura a possibilidade de integração dos palestinianos na vida do novo Estado não parecia longínqua. Segundo diversos historiadores, terá sido a vinda massiva para Israel de judeus-americanos sem quaisquer relação com a tradição da esquerda europeia, associada à ascensão dos setores militaristas durante as guerras dos Seis Dias (1967) e do Yom Kippur (1973), que terão infletido a vida política israelita no sentido do abandono dos ideais igualitários e de uma inflexibilidade perante o problema palestiniano, acentuados ao longo das últimas décadas. Apesar da preservação, na condição de minoritária, de uma corrente tendencialmente socialista e pacifista, laicista até, por vezes, protagonizada por israelitas que não acompanham os sucessivos governos de direita.
Infelizmente, a tendência dominante tem vindo a crescer com apoio de uma população criada já num ambiente marcado por uma política de cerco, conscientemente provocada e tendente a ignorar propostas de natureza pacífica e multiconfessional, acabando por favorecer, do lado oposto, os setores palestinianos, ou do mundo árabe em geral, que consideram inaceitável a própria existência do Estado de Israel. Temia-se por isso o pior nas eleições gerais que decorreram nesta terça-feira, contando-se com uma vitória folgada da coligação de direita Likud-Beiteinu, liderada pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, e uma subida em flecha do partido de direita Casa Judaica, de Naftali Bennett, próximo dos ultra-ortodoxos e que defende um regime de apartheid separando judeus e árabes. Mas afinal não foi isso que aconteceu: enquanto a coligação de direita apesar de ter vencido desceu, o segundo lugar foi alcançado pelo partido secular de centro-esquerda, Yesh Atid (Há um Futuro), liderado por Yair Lapid, seguido do Partido Trabalhista, tendo o partido de Bennett ficado em quarto, a considerável distância. Não podemos saber se esta é uma alteração circunstancial, e é verdade que esta esquerda tem caraterísticas muito particulares, mas a esperança de se estar a produzir uma inflexão gradual no eleitorado israelita e de a linha belicista estar a perder terreno é positiva. Devolvendo a esperança de ser possível ver de novo Israel admitir que a força bruta não é a solução, podendo até voltar-se contra a sua própria existência. Fazendo com que deixe de se apresentar aos olhos da opinião mundial como expressão acabada do mal absoluto. E cortando as pernas ao retorno gradual do antissemitismo.
Nota: À hora a que escrevo, 00h50 de 23 de Janeiro, segundo as primeiras sondagens a direita terá 61 a 62 votos entre os 120 lugares do Knesset e os partidos da esquerda 58 a 59. Algo estará a mudar? | Atualização às 13H00: direita e esquerda empatados com 60 deputados cada; apesar da esquerda ter maior número de votos, a coligação de direita, mais votada por partido ou coligação, deverá formar governo.
Nota 2: Ver aqui um artigo de Margarida Santos Lopes, no Público, com dados atualizados e uma interpretação dos mesmos.