Contou-me certa vez um amigo açoriano que a imagem do medo da sua mais recuada memória de infância associava três elementos: a proximidade de hipotéticos navios russos, a intervenção certa e segura do diabo e a convicção de que, por onde quer que passeasse na sua ilha, existiriam fiscais do isqueiro para o autuarem por falta de licença de uso daquela ferramenta manual de ignição, imprescindível para os fumadores, como ele era na altura. Este terceiro medo era afinal o único que tinha razão de ser: a necessidade de porte de licença para uso de acendedores e isqueiros antes de 1974 não é uma invenção de pessoas com imaginação e prova-nos de que forma, naquela época, a vigilância policial dos cidadãos combinava por vezes a rigidez do controlo com a intervenção do ridículo. O aviso, feito agora pela Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais, de que, onde quer que se transacionem bens, poderão ser realizadas ações de fiscalização «que incidam sobre a obrigação de exigir a emissão de fatura por parte dos consumidores finais», ações que «podem ser realizadas à saída dos estabelecimentos comerciais para garantir que os consumidores exigem efetivamente as faturas pelas compras realizadas», reconduz-nos perigosamente a esse tempo. Pondo portugueses a vigiarem portugueses, de livro de autos na mão, inclusive à porta de capoeiras nas quais se possam transacionar clandestinos galináceos, ou encostados às carroças dos assadores de castanhas, como «medida de combate eficaz à economia paralela, à evasão fiscal e às situações de subfaturação». Para reequilibrar as contas do Estado, naturalmente. De volta pois à apoteose do ridículo.