Há cerca de duas semanas, quando nele reparei pela primeira vez, pareceu-me de imediato que valeria a pena comentar um dos mais divulgados dos cartazes com os quais a CGTP procurou mobilizar os cidadãos para as manifestações deste 16 de fevereiro contra as políticas antissociais do governo. A maior parte da propaganda difundida falava aliás, preferencialmente, de «trabalhadores», não de «cidadãos», menosprezando a mudança semântica que nas últimas décadas envolveu aquela palavra. Agora reforçada, aliás, no contexto de um alastramento dramático do desemprego, do trabalho precário, da desqualificação profissional e da pauperização da classe média. Tomei na altura algumas notas, mas não escrevi logo um post pois de modo algum queria, por ínfima que pudesse ser a sua divulgação, que este pudesse ser interpretado como um apelo à desmobilização de um combate imprescindível e agregador que é urgente travar. Ultrapassadas essas circunstâncias e de um modo agora mais sereno, vou direto ao assunto.
A teoria semiótica, na linha de Barthes e de Eco, incorpora, ao lado da importância simbólica das palavras que ultrapassa o seu valor mais estritamente textual, as imagens, estáticas ou em movimento, bem como outras formas de comunicação não-verbal, na dinâmica da construção do significado. É esta que as faz «dizerem» o que não é explicitamente dito, mas que os signos visuais comunicam, «falando» sem palavras, transmitindo de forma silenciosa e subliminar aquilo que o discurso falado ou escrito demoraria muito mais tempo a dizer, e fazendo-o não apenas com economia de meios, mas até com maior eficácia. Por isso o cartaz pode ser – ainda hoje pode ser, apesar da multiplicação e do desenvolvimento tecnológico dos meios visuais – um poderoso instrumento de propaganda e de afirmação de dada representação política e cultural do mundo, agindo sobre as consciências de quem recolhe a sua mensagem. A magnífica tradição do cartaz soviético do período da guerra civil e da era pré-estalinista, em particular a dos criados durante a fase construtivista, funciona como testemunho e como modelo da dimensão revolucionária desse instrumento, destinado a juntar texto e imagem na produção de uma ferramenta capaz de acelerar a mudança histórica.
Este cartaz da CGTP, ou a ela associado, recorre a essa técnica mas produz uma mensagem objetivamente retrógrada. Repare-se nos pormenores: uma multidão estática observa o interlocutor. As filas são compactas, impecavelmente alinhadas, assegurando o traço uma ideia da «força das massas» herdeira – passe o caráter naïf do desenho – das velhas técnicas «significantes» do realismo socialista. Nos rostos, os olhares são todos idênticos, mostrando certeza, convicção. As roupas são simples, humildes, esteticamente datadas dos anos sessenta. Ninguém tem um aspeto irregular, «estranho»: os cabelos são cortados de forma semelhante, ninguém usa piercings, tatuagens, cabelo rasta ou rabo-de-cavalo. Nada de anoraques ou óculos «à John Lennon». As duas mulheres decotadas da fila da frente oferecem uma leitura peculiar, e bastante sexista, do «feminino». Não há por ali excesso: não existem faixas «anárquicas», tudo é controlado, como que subordinado a uma só via e a uma tarefa histórica transcendente que anula o individual. No topo, a vermelho-bandeira, duas palavras, que não surgem por acaso, destacam-se de todas as outras: a valorização do papel da «LUTA ORGANIZADA», impõe um passo certo e convenientemente dirigido por quem tem, no campo político, a presunção de ser o núcleo diretor, único fiável porque «científico», dessa capacidade de organização.
Independentemente das boas intenções ou da perceção de quem o concebeu e aprovou, não há leitura ingénua que possa resistir ao distanciamento que este cartaz propõe em relação à projeção visual das manifestações de rua, «desorganizadas» e polifónicas, carentes de uma vanguarda organizada, que no verão passado encheram as ruas e as praças de Portugal, perturbando os partidos institucionais, amedrontando o governo, e fazendo-o recuar de imediato em relação à aplicação da TSU. Na manhã de 16, na previsão da manifestação feita a pedido das televisões, o secretário-geral da Intersindical, Arménio Carlos, reforçava a mensagem, explicando que a luta deveria ser travada seriamente e «a uma só voz». Para quem conhece a história da esquerda e a tradição do movimento operário e socialista dos últimos cem anos, esta noção vincadamente «unitarista» do combate social só pode provocar calafrios. E afastar da batalha uma parte muito significativa dos cidadãos ativos e disponíveis, provenientes sobretudo das classes médias, da juventude educada e cosmopolita, e das mais variadas minorias, a quem esta perceção histórica de uma luta lançada «a uma só voz» apenas assusta e afasta. Enfraquecendo a empatia, na diversidade democrática, que, também na rua, pode ajudar a derrubar este governo e a traçar o imprescindível caminho alternativo. Sem autoproclamadas vanguardas e pronunciado a muitas vozes.