O ódio contra alguém começa devagar, mas se não é atalhado não para de crescer. Ele parte de uma aversão nebulosa, alimentando-se do rancor e jogando-se na inimizade e na repulsa que afastam até um ponto de não retorno. Mas não é meramente passivo: o ódio leva quem o vive a tentar isolar, a procurar destruir, a tudo fazer para abalar as ideias, a forma de estar, o passado, o presente e o futuro de quem tanto se detesta. É um sentimento mórbido, que cega sem remissão, que avilta, que nada produz, que coage a liberdade e tiraniza quem o vive. Além disso, raramente age de forma frontal: por regra denigre, insinua, alimentando-se de rumores, de meias-verdades e de mentiras. Nada tem a ver com o reconhecimento da diferença ou com o combate limpo contra as ideias da pessoa da qual se discorda, de quem não se gosta e que se rejeita.
Infelizmente, o ódio é muito comum no combate político. E, por razões históricas que se prendem sobretudo com a tradição leninista, no que esta tem de pior – a conceção do combate político como extensão de uma luta de classes sem quartel, que define o seu próprio código ético e se estende ao interior dos partidos e movimentos – tem-se vulgarizado no território da esquerda. Os exemplos sucederam-se ao longo do último século e são aos milhões, sendo particularmente notórios naqueles onde se resiste à afirmação de diferenças no interior das próprias organizações. Relatos e biografias, publicados ou conservados, testemunham essa realidade. Sob o estalinismo, foram inúmeros os militantes comunistas, fiéis bolcheviques e não apenas trotskistas, que foram socialmente isolados, perderam os empregos, foram presos ou fuzilados pelo pecado, real ou imaginado, da inaceitável divergência, por pequena que ela fosse. Esta realidade reemerge periodicamente quando a discordância se torna diferença e em especial quando o seu portador tem notoriedade pública: o grupo dominante, e sobretudo quem crê defendê-lo tornando-se mais papista que o papa, tudo faz então para isolar quem a protagoniza. Recorre-se a todos os meios, entre eles a tentativa de assassinato de caráter: através da insinuação, do boato, do «diz-se que», do «parece», invariavelmente associado a «conspirações» e «provas» de desonestidade, maldade e traição, destinados a diabolizar quem se afasta.
Isto surge, evidentemente, a propósito de muitos comentários que têm circulado, sobretudo através das redes sociais, sobre a saída de Daniel Oliveira do Bloco de Esquerda. Não importam agora aqui os motivos e os critérios de razoabilidade que invoca na sua carta de demissão, sobre os quais não me pronuncio agora: terá provavelmente razão em algumas coisas, não a terá seguramente noutras, exacerbou o conflito para justificar a rutura, e, acima de tudo, revelou um grau de desafetação de práticas e escolhas maioritárias do Bloco que já se vinha notando há bastante tempo, sendo o seu gesto o resultado natural deste distanciamento. Daniel Oliveira está no entanto seu direito, tal como está, no campo da atividade cívica, no de seguir o caminho que a sua consciência dite, não ficando por esse motivo com a suas capacidades de exercício da cidadania diminuídas. Trajetos como este fazem parte da democracia e só em ditadura a livre enunciação da diferença, da discordância ou da mudança de opinião é crime imputável e imperdoável.
Agora o que não é nada bonito, e só prejudica quem o faz e até a causa pela qual se bate, é o grau de violência verbal, pública ou privada, de quem tem procurado «justificar» e punir a sua saída referindo, em forma de libelo acusatório, um conjunto de características pessoais, todas elas «perversas», que há muito tempo «anunciariam» o gesto «previsível» de intrínseca «maldade» e de consabido «oportunismo», associado a uma «agenda escondida», que agora foi consumado. Mimando assim, uma vez mais, as tais práticas caluniosas e odientas com mais de cem anos e tantas vezes repetidas, até em casos recentes. O ódio cega, é incapaz de argumentar, e é péssimo para a democracia e para essa unidade, assente na diferença de escolhas, da qual a esquerda precisa com urgência para mudar o país. E, pelo caminho, para mudar também a nefasta ideia segundo a qual, no combate político, «verdade há só uma», a nossa. Isto, sim, uma perfeita e inútil falsidade.