Quando alguém pede que declare a identidade religiosa costumo descrever-me como um ateu cristão. Não é difícil explicar o aparente paradoxo: não concebo racionalmente nem creio na existência de um Deus superior, entidade sobre-humana que não esteja apenas dentro de nós como parte de nós, e muito menos acredito nas virtudes de uma religião capaz de tomar principalmente a forma de Igreja. Prezo muito no entanto a mensagem, revolucionária à época do seu surgimento, proposta por Jesus. Admiro-a pelo que então trouxe de radicalmente novo: pela defesa da paz e da aceitação numa era marcada pela guerra e pela tirania, pelo acento no ecumenismo num tempo de ódio religioso e poder imperial, pelo reconhecimento da igualdade numa sociedade esclavagista, pela valorização da compaixão e do amor quando a ética dominante assentava na violência, pelo reconhecimento das mulheres dentro de uma sociedade acentuadamente patriarcal, pela ênfase colocada na humildade quando a soberba pontuava a conduta daqueles que se elevavam acima dos outros.
Sei, todos sabemos, que o cristianismo nem sempre foi fiel a esses grandes compromissos. Pelo contrário, muitas vezes, vezes demais, os renegou, e tantos são os cristãos, ministros ou leigos, que continuaram a fazê-lo ao longo de séculos, proclamando ao mesmo tempo uma obediência apenas formal àqueles valores. No entanto, para o bem e para o mal, o cristianismo, e em particular a mais influente e numerosa das suas Igrejas – a Católica Apostólica Romana – continua a ser o mensageiro reconhecido dessa mensagem primitiva, de esperança, igualdade e fraternidade, que Jesus um dia começou a espalhar. E por isso também conservei e conservo ao lado de uma atitude crítica, uma outra de respeito, em relação àquilo que ela continua a significar para o mundo. Mentiras, farisaísmos e fanatismos à parte
A eleição do novo papa, pelo espetáculo que sempre transporta consigo e, desta vez, pelos sinais que parece emitir, fez voltar o tema do papel e do lugar da Igreja católica aos cabeçalhos e às preocupações comuns. Alguns desses sinais – já lá iremos – remetem-me para As Sandálias do Pescador, o romance de Morris West passado para o cinema, em 1968, por Michael Anderson, com Anthony Queen (Kiril Locota) no protagonista. O enredo ficciona a partir da história verdadeira de Josyf Slipyj, um cardeal ucraniano detido no Gulag soviético que foi libertado em 1963 pela intervenção de João XXIII e de John Kennedy. O «cardeal Locota» acabará eleito papa, emergindo, num mundo complexo e que mal conhecia, como alguém, quase um sonâmbulo, que trazia para o rígido universo da Cúria Romana o lastro de solidão, sofrimento e capacidade para se solidarizar com os outros que havia aprendido nos anos de clandestinidade e cativeiro. Parte do enorme êxito do filme, algo marcado ainda pelos fantasmas da Guerra Fria, veio, na altura, dessa capacidade de pensar o impensável: uma Igreja que tinha à sua cabeça um homem normal e que, de especial, tinha apenas a missão, que lhe fora confiada, de prosseguir a caminhada um dia iniciada pelo pescador Simão, o discípulo dileto de Jesus Cristo que este rebatizou Pedro e fez bispo de Roma.
A eleição do papa argentino Francisco, parece incorporar um pouco deste filão integrado num certo imaginário universal. É verdade que, logo após a eleição, surgiram rumores sobre a eventual cumplicidade de Bergoglio com o regime assassino do General Videla. Nada comprovado, como muitos outros afiançam, embora pareça lógico que a ascensão a cardeal, e mais ainda a papa, se encontre vedada a grandes revolucionários ou a simpatizantes da Teologia da Libertação. E também será verdade, tal como acontece com a maioria dos católicos, e a maior parte da sua hierarquia, que o novo papa assumiu posições conservadoras em questões críticas para a Igreja, como a aceitação da homossexualidade e do casamento entre pessoas do mesmo sexo ou a interrupção voluntária da gravidez. Mas parece inequívoca, embora tenhamos de esperar para ter algumas certezas, uma atitude de abertura de Francisco à normalidade do mundo, um certo esforço de aproximação às pessoas comuns e sobretudo uma posição de distanciamento em relação à religiosidade cega feita de preconceitos e aparências. Que tanto tem angustiado os católicos e as católicas que possuem, da sua fé e da sua Igreja, uma perspetiva de transparência e simplicidade mais conforme à caminhada terrena de Cristo.
Tendo em conta o importante papel da Igreja católica no equilíbrio político mundial e na procura de soluções de paz, e também aquilo que ela representa, em tantas partes do mundo, como instrumento, por vezes único, de defesa da educação, da saúde e do bem-estar dos mais pobres e humildes – mesmo quando os Estados lavam as mãos dessa obrigação fundamental – esses sinais só podem ser positivos. Assim eles se expandam, mais do que em belas palavras, que também confortam, em melhores e inequívocos atos. A aplaudir, se o merecerem. Ou a denunciar, se mantiverem essa atitude de «públicas virtudes e vícios privados» que temos observado dia após dia.