O escândalo partiu de onde menos se esperava. Thomas Kohnstamm, autor de diversos volumes da Lonely Planet, a colecção de guias de viagem utilizada durante muito tempo por quem pretendesse libertar-se da ditadura francófila e dispendiosa dos Guias Michelin, resolveu contar – e fazer dinheiro com isso, publicando e vendendo às centenas de milhar Do Travel Writers Go To Hell? – de que forma redigiu os seus textos sem ir a muitos dos lugares dos quais falava. Ou passando por lá mas viajando, comendo e dormindo de uma forma bem diferente daquela que depois relatava aos seus leitores. Algumas vezes aceitando luvas para recomendar determinados hotéis, sugerir certos restaurantes, ou para fazer passar baiucas por bares imperdíveis. Fazendo-o, pois era bom nisso, de uma forma inteiramente convincente. Uma ou outra discrepância entre a realidade e o vertido no papel que alguns dos seus leitores iam notando passava sempre por excepcional, ou por azar do viajante. Foi preciso Kohnstamm escrever este livro para o embuste ser revelado.
A verdade, para que não me acusem de algo parecido, é que não li Do Travel Writers Go To Hell? – até uma excelente narrativa de viagem, dizem-me, e por isso vou ver se o arranjo – mas apenas as quatro páginas, escritas por Luís Maio, que sobre ele saíram ontem no suplemento «Fugas» do Público. O suficiente, porém, para ficar na dúvida sobre até que ponto muitos outros autores de guias disponíveis fizeram ou fazem a mesma coisa. E para perceber melhor de que forma muitos deles deixaram, ao contrário do que ocorreu num passado ainda recente com viajantes por sua conta e risco como Bruce Chatwin, Bill Bryson, Tony Horwitz ou Jeffrey Tayler, de seguir as suas próprias escolhas e de construir uma leitura crítica dos locais e regiões visitados, para vender ao leitor uma imagem apenas divertida, excitante ou serena de sítios nos quais este pode afinal ser explorado, passar um mau bocado ou conviver com todos os perigos. Se já olhava um tanto de lado os guias demasiado ilustrados que costumam inundar as livrarias a partir de Março e os textos xaroposos e superficiais com fotografias do autor-viajante enquanto poseur que passam por literatura de viagens (ou são-no a uma escala menor), agora mais desconfiado fiquei.