Desde 1927, ano em que este livro de Joseph Roth (1894-1939) foi publicado, quatro importantes fatores modificaram profundamente a condição, a vida e o destino dos judeus do leste europeu. O primeiro foi a acentuada expansão do antissemitismo na Europa Central, com esse cortejo de sofrimento, exclusão, fuga e extermínio que culminou no Holocausto e mudou radicalmente a sua geografia física. O segundo foi a formação do Estado de Israel em 1948, consumando a definição de uma nova área de povoamento e, em consequência, a rápida reformulação das tradições e das condições de vida daqueles que ali se foram estabelecer. O terceiro fator foi o retorno das perseguições na antiga União Soviética, visível nos últimos anos de Estaline mas que não se esgotou após a sua morte e criou as condições para um novo êxodo. E o último foi a atitude expansionista e agressiva, progressivamente imperante no Estado de Israel a partir das guerras dos Seis Dias e do Yom Kipur, que alterou o modo de reconhecer os direitos históricos dos judeus. Em pouco mais de meio século, esta conjugação de fatores tornou irreconhecível o universo que o jornalista e escritor austríaco aqui procurou descrever e explicar, dispersando ou transformando para sempre aqueles que o formaram.
Roth retrata-nos pois um mundo desaparecido, mas único, que mesmo a maior parte dos membros da diáspora judaica tinham naquela época dificuldade em conceber. Judeus Errantes é assim uma obra de não-ficção que relata a vida das comunidades judaicas do lado mais oriental da Europa e a daquelas que resultavam do seu movimento para fora da sua região de origem, tal como elas existiam antes da afirmação mais extrema do antissemitismo. Descreve sucessivamente a existência dessas comunidades numa cidade da Galícia Oriental (a cidade natal de Brody, parte ainda, na sua infância, do Império Austro-Húngaro), bem como em Viena, em Berlim, em Paris, e ainda na América e na União Soviética. A sua apreciação é simultaneamente distanciada – a condição de intelectual permeável, apesar da sua origem judaica, à cultura ocidental de matriz cristã faz-se sentir sob este aspeto – e de alguma forma romântica, na admiração pelas origem rurais dos judeus da Europa do Leste, como pessoas capazes de conservarem os velhos hábitos sem incorrerem nos processos de assimilação que foram afetando os que entretanto se haviam deslocado para ocidente, começando pelos de Berlim e de Viena. A estes observava-os até, no seu comportamento egoísta e urbano, como a antítese desse universo de origem, marcado ainda pela solidariedade. Não sendo sionista, e vendo até com desconfiança todas as formas de nacionalismo, tomando além disso como referência do seu «nós» os europeus ocidentais, quando não os alemães, Joseph Roth assume ainda assim uma forte atração pela identidade dessas comunidades capazes de resistirem a essa influência ocidental que apelida de «mortalmente antissética e aborrecida», mesmo quando as circunstâncias pessoais obrigavam ao seu contacto com outras culturas. Uma atração que se estende até à pobreza material que exibiam, nos antípodas do estilo aristocrático que o escritor mantinha.
No final deste grande livro reproduz-se ainda um posfácio bastante negro, desesperado mesmo, escrito por Roth dez anos após a primeira edição. Neste se reconhecem as rápidas transformações impostas pelas políticas antissemitas do nacional-socialismo, que sob o peso da segregação e da perseguição que a todos afetava estavam a diluir as diferenças entre as comunidades judaicas da Europa, deixando entender que a atração pelo mundo em dissolução dos judeus orientais, que antes delicadamente e quase orgulhosamente exibira, se via agora confrontada com o brutal eclipse imposto pelas novas circunstâncias. Perante a incompreensão dos «povos anfitriões», em boa parte transformados em inimigos, restaria agora, aos que lhe sobreviviam, «apenas o consolo celestial».
Joseph Roth, Judeus Errantes. Sistema Solar. Trad., prefácio e notas de Álvaro Gonçalves. 174 págs. Versão revista de artigo publicado na LER de Maio de 2013.