A partir de hoje passo a reproduzir aqui alguns dos artigos de opinião publicados regularmente no Diário As Beiras, de Coimbra. Por vezes com pequenas revisões. Num caso ou noutro – como acontece com este texto – os temas abordados poderão ter maior relevância para os leitores (ou para os passageiros) da cidade.
A primeira memória que tenho de Coimbra liga-se a uma frase enigmática do meu pai. Um dia, ao passarmos na Portagem, junto ao antigo Café Montanha, apontou para um grupo de rapazes e de raparigas de roupa negra, muito justa, e avisou-me: «Olha, aqueles ali são os existencialistas». Deve ter acontecido por volta de 1960 e muitos anos depois, ao folhear uma coleção do jornal Via Latina, percebi que nessa época estava de facto em curso na academia coimbrã um combate de ideias entre estudantes católicos mais ou menos conservadores e um grupo de defensores do «existencialismo francês», reconhecendo estes sermos nós os primeiros responsáveis pelo destino que escolhemos. O episódio ficou registado e creio ter sido ele a fazer com que passasse a ver a cidade, apesar da sua estreita dimensão – então menos de metade dos habitantes de hoje –, como um território aberto à novidade do mundo e aos seus dilemas.
Quando em outubro de 1969 para cá vim concluir o liceu, essa imagem foi reforçada. Com alguma sorte, as primeiras pessoas que conheci foram jovens poetas e artistas pouco ortodoxos, que agiam e pensavam como se vivessem em Paris, Londres ou Nova Iorque e me alimentaram essa imagem de um lugar que, apesar da censura e da moral conservadora, aparecia como uma plataforma para a descoberta de um mundo maior e sem barreiras. Jamais deixei de ver assim este lado coimbrão e acredito que o mesmo se tem passado com sucessivas gerações de estudantes. Dos rapazes da Geração de 70, Antero à cabeça, que acorriam à estação ferroviária para verem em primeira mão os livros chegados no Sud-Express, aos jovens que, já na segunda metade do século vinte, tratavam por tu Brecht, Breton, Sartre, Camus, Godard, Bergman ou Foucault, integrando-os nas vivências de uma cidade maior e mais aberta que o seu estreito mapa físico.
Por isso tantos rejeitaram uma Coimbra fechada, associada à lengalenga sonolenta das tradições repetidas, ao conformismo, ao elitismo, ao machismo, às anedotas sobre estudantes estroinas e professores anacrónicos. Esta cidade existe, sem dúvida, amarrada a um passado real ou inventado que muitos insistem em olhar com saudade e «encanto». Mas existem outras «Coimbras», menos previsíveis e aborrecidas. A do povo, naturalmente, que sempre escapou à sombra da Torre, levando a sua própria vida. Mas a Coimbra cosmopolita também: culta, orgulhosa, resistente, moderna, poética «cidade aberta» onde, ano após ano, é possível rasgar infinitas geografias na consciência dos que, aos milhares, aqui chegam para descobrir a diversidade e a humanidade de tudo. Assim eles o queiram.