Apesar de conservar um rastro visível e constante na vida pública nacional das últimas quatro décadas, parte significativa do processo de descolonização de Angola tem permanecido em boa medida calada. As causas deste silenciamento são diversas. Há desde logo a influência da narrativa oficial, produzida pelas autoridades portuguesas em circunstâncias históricas complexas e dramáticas logo nos anos de 1974-1975, a qual foi ocasionalmente contrariada mas jamais revista. Outra causa tem a ver com o uso recorrente de relatos – geralmente impostos por setores politicamente conservadores ou emocionalmente envolvidos nos acontecimentos – mais pontuados pela nostalgia, pelo rancor ou pela incompreensão que por uma tentativa de perceber realmente aquilo que aconteceu. Além disso, o que se passou em Angola naquele período foi de certa forma empurrado para segundo plano pelos terríveis caminhos da violência ali percorridos após a independência do país.
Tudo o que aconteceu foi ainda, nas causas, processos e consequências, tão complexo e envolto em dramáticas decisões, tomadas em regra longe da praça pública, que seria preciso um trabalho de investigação bastante sistemático, detalhado, e acima de tudo muito paciente, para que a sua história pudesse passar a ser contada sem tabus. Foi esta a missão a que se dedicou a jornalista Alexandra Marques e o mínimo que pode dizer-se do resultado do seu trabalho é que este, sendo por vezes polémico e mais centrado em olhares de portugueses – o próprio título, apelando a «segredos da descolonização», pode inadvertidamente remeter para algumas teorias da conspiração enunciadas pelos setores que contestaram a posição do governo português no processo de independência –, não só desvela aspetos desconhecidos ou mascarados do processo da independência angolana, como nos ajuda ainda a rever ou a fundamentar o papel objetivo desempenhado por muitos dos seus protagonistas. Este é, entretanto, um trabalho no qual jornalismo e história recente confluem de forma interdisciplinar, dele resultando um texto informativo e compreensivo, escrito com grande fluidez discursiva e procura de rigor. Sabendo-se o quão difícil este é de assegurar sempre que se abordam acontecimentos dos quais permanece uma memória viva, por vezes traumática e associada a responsabilidades vistas com algum melindre, em relação aos quais existem ângulos de observação de difícil acesso.
A leitura dos acontecimentos é repartida por duas partes determinadas pela cronologia: a primeira vai do 25 de Abril de 1974 ao 15 de Janeiro de 1975, quando a assinatura do Acordo do Alvor estabeleceu os parâmetros para uma partilha do poder entre os três grandes movimentos independentistas de Angola – o MPLA, a FNLA e a UNITA –, permitindo, aparentemente, vislumbrar uma solução pacífica e de equidade; a segunda vai desta data até à consumação da independência em 11 de Novembro do mesmo ano, já em condições de aberta guerra civil entre os três movimentos, tratados de modo desigual, com favorecimento político do movimento presidido por Agostinho Neto, por uma parte significativa dos responsáveis políticos e militares portugueses. Estando os dois momentos intimamente ligados, é no entanto evidente que é nesta segunda parte do processo que a intervenção das autoridades portuguesas, ou certas vezes a ausência dela, proporcionou as condições para que se tornasse difícil impedir a escalda da violência. Uma escalada que não só fez grande número de vítimas como impossibilitou que muitos angolanos de origem europeia pudessem permanecer no território, como desejavam.
Podendo agora dizer-se que esta situação foi desde cedo apontada por muitos dos cidadãos obrigados a retornar ou a exilar-se no «Puto», o Portugal europeu, o que este livro tem de particular é que não se insere no registo da queixa, como o foram fazendo muitos textos memorialísticos entretanto publicados, geralmente escritos numa tonalidade saudosista e pouco explicativa, mas antes procura comprovar, com recurso a grande volume de documentos autenticados e a testemunhos pessoais aparentemente fidedignos, o modo como tudo o que aconteceu resultou, para além das circunstâncias que então se viviam em Portugal e em Angola, da vontade assumida de tomar partido e de alguma dificuldade para prever as consequências das decisões tomadas. Mas os tempos de revolução são geralmente assim, bem rápidos e quentes, e é muito mais fácil descobrir erros a posteriori, com base em perspetivas iluminadas por novos dados e por algum distanciamento crítico.
Alexandra Marques, Segredos da Descolonização em Angola. D. Quixote. 544 págs.Versão revista e ampliada de um artigo publicado na LER de Julho-Agosto de 2013.