Os meses que antecederam as eleições autárquicas decorreram como se de repente tivéssemos mudado de país. A intervenção errática e hostil do governo sobre a nossa vida e as nossas esperanças afrouxou significativamente, deixando que nos concentrássemos no território de proximidade administrado pelo poder local. Nem tudo, porém, correu pelo melhor. Apesar de existirem naturalmente diferenças, algumas significativas, entre as listas concorrentes, os seus programas, os processos de aliança que incorporaram ou a qualidade e o perfil dos candidatos, o seu padrão foi demasiadas vezes nivelado por baixo. No Facebook, uma página de «tesourinhos deprimentes das autárquicas», rapidamente popularizada, revelava em tom bastante jocoso um panorama tão extravagante quanto catastrófico.
Mesmo tendo em linha de conta honrosas exceções, as escolhas feitas pelos principais partidos colaboraram por via de regra com essa dimensão deprimente, aviltante até em certos casos, da campanha. O acento tónico raramente foi colocado em ideias, em projetos, na mobilização dos cidadãos, substituídos em muitos locais pela enunciação de slogans ocos ou demagógicos, pela excessiva personalização das candidaturas, por promessas frequentes vezes absurdas, e até por pressões e conflitos que minaram, em alguns momentos, a dimensão democrática do processo eleitoral. Naturalmente associada ao dever do voto entendido como um gesto consciente e informado, não como mera expressão de um endosso, mais ou menos condicionado, a figuras reconhecidas pela carreira partidária ou por alguma projeção mediática que ela lhes conferiu, mas sem grande qualificação, programa ou capacidade mobilizadora.
Foi neste quadro que em diversos pontos do país emergiu um bom número de candidaturas assumidas, com maior ou menor rigor, maior ou menor verdade, como «independentes». Todos os analistas idóneos ou razoavelmente isentos coincidem em afirmar que, a par do aumento do número de abstencionistas e, particularmente significativo, do volume de votos nulos ou em branco, esta vaga de candidaturas que se apresentaram aos eleitores como mais ou menos autónomas em relação aos partidos, particularmente aos partidos do «arco do poder», foi o fator dominante desta campanha. Foi o que aconteceu, com cambiantes diversas, em cidades decisivas ou importantes como o Porto, o Funchal (onde o PS soube abrir-se sem complexos a outros setores) e Coimbra.
Aqui, em escassos quatro meses, sem estruturas de apoio, quase sem meios financeiros, com limitado apoio mediático (e alguns boicotes pelo meio), o movimento Cidadãos por Coimbra – com o apoio formal do Bloco de Esquerda mas que o transcendeu em muito – obteve 9,27% dos votos para a Câmara Municipal e 10,9% para a Assembleia, elegendo um vereador e quatro deputados, para além de diversos mandatos nas freguesias. Fui seu apoiante, mas não será por isso que tenho qualquer pudor em afirmar que esta foi, sem dúvida, a candidatura que apresentou aos eleitores um programa mais elaborado, consistente, inovador e assente numa expectativa de trabalho a efetuar, não em promessas vagas ou de todo irrealizáveis apresentadas como um isco. Veremos agora se os CPC, ainda que com escassa margem de manobra, mostrarão capacidade para intervir construtivamente, com transparência e abertura à comunidade, na gestão da cidade.
Resta insistir em que o papel dos movimentos desta natureza, necessários também nas eleições legislativas, não é o de se substituírem aos partidos políticos, sempre indispensáveis em democracia. Mas o de alargarem o leque de opções em termos de representatividade e, espera-se, o de forçarem as próprias estruturas partidárias a emancipar-se do jogo de influências e da perda de densidade política para os quais – embora tal aconteça mais com uns do que com outros – se têm deixado arrastar. Afastando da participação um volume crescente de eleitores e de cidadãos, válidos e empenhados, que muito têm a dar à vida pública e à democracia. Antes que esta acabe sepultada com gravata de seda e fato escuro cor de cinza.
Publicado originalmente no Diário As Beiras. Versão revista.