Até ao início dos anos oitenta, principalmente na Europa e nas Américas, dois setores sociais mostravam-se particularmente sensíveis aos processos de crítica e de reforma da ordem do mundo, neles jogando um papel muitas vezes decisivo enquanto forças dinâmicas dos tempos de mudança. Pela natureza da sua formação e da sua associação ao mundo do conhecimento, da dimensão essencialmente reflexiva da sua atividade, da sua natural abertura ao mundo e das suas expectativas históricas, os intelectuais – pensadores, artistas, escritores, jornalistas – e os estudantes mostravam-se mais naturalmente dispostos a intervir como fator nuclear, estímulo ou apoio no domínio da reflexão crítica, do conhecimento e da atividade cívica.
A sua capacidade natural para melhor entenderem e acompanharem o movimento do mundo, bem como a sua autonomia e a sua disponibilidade determinadas pelo lugar socialmente mais livre que ocupavam, conferiam-lhes condições particulares em termos de iniciativa, de combatividade e de recusa do imobilismo. Uns e outros partilhavam, além disso, práticas e códigos que assumiam o papel constitutivo do saber e da cultura, que neles tornava quase natural a predisposição para o combate por valores de justiça, desenvolvimento e equidade. Particularmente nas duas décadas que se seguiram ao termo da Segunda Guerra Mundial, a intervenção desses setores foi absolutamente decisiva para o surgimento de sociedades mais democráticas, mais justas e com uma maior dose de confiança no futuro.
Contudo, nas últimas décadas, este universo habitualmente dinâmico foi abalado por transfigurações que afetaram a sua identidade e o seu comportamento. Enquanto um grande número de intelectuais era empurrado para a apatia pela nova ordem saída da crise de consciência da «pós-modernidade» e pela intervenção agressiva da indústria cultural, tornando-se atores do sistema e já não seus adversários, os estudantes, que ao longo da década de 1960 haviam sido decisivos para o lançamento dos novos movimentos sociais, foram perdendo a centralidade política, a capacidade de mobilização e até a disposição para a indignação. Se a crise agora em curso voltou a baralhar os dados e a impor a instabilidade e a incerteza, empobrecendo, marginalizando ou deixando sem futuro a maioria dos cidadãos, e em consequência os membros destes dois grupos, tal não significou, todavia, o regresso da aptidão interventiva. Pelo contrário, muitos dos seus representantes parecem até ter-se adaptado à selva neoliberal, baixando os braços, resignados e já sem qualquer esperança.
Em Portugal este panorama encontra-se instalado, tendo-se estabelecido como norma, mesmo nestes setores, o culto no individualismo e o desinteresse pelos destinos do país. Os intelectuais perderam a independência que os caracterizava e agora são raros, quase extravagantes, aqueles que assumem posições frontais e combativas, ficando sem contraditório público os políticos profissionais que chegaram ao poder sem estrutura cultural ou real experiência de cidadania. Já a larga maioria da atual população estudantil, no meio da crise brutal que tanto a afeta, que tanto dói às suas famílias e as deixa sem linha do horizonte, parece arrastar-se num clima de permanente festim e de completa apatia, despolitizada, indiferente à busca do futuro e à reivindicação dos seus próprios direitos. Pode ser que a agudização da crise venha a despertar uns e outros e os leve a agir. Esperemos é que isso não aconteça demasiado tarde.
Publicado originalmente no Diário As Beiras.