Numa perturbante sequência do filme Sátántangó (O Tango de Satanás), do húngaro Béla Tarr, dois homens caminham, longamente e a custo, de costas voltadas para a câmara, por uma comprida estrada de asfalto molhada pela chuva, enquanto toneladas de detritos são empurrados por um vento fortíssimo na mesma direção, envolvendo-os numa paisagem suja e destroçada, e conferindo à sua marcha um sentido de resistência em ambiente hostil. Não é difícil estabelecer uma analogia entre esta cena filmada em travelling e o presente que nos cabe.
Os sinais estão aí. Vemo-los sem olhar, esmagados pelas contas e pelos prazos: comer para viver, pagar a prestação da casa, comprar os comprimidos. Sobreviver com cada vez menos, com o essencial, na fronteira mais recuada da dignidade. Por vezes, já abaixo dela, embora procuremos convencer-nos de que assim não é. Concentramo-nos no essencial enquanto nos dizem que quase tudo é supérfluo, e tentamos não ver o cenário que se abre à nossa frente. Mas é com este cenário, novo para a larga maioria dos que têm hoje menos de quarenta anos, que nos dizem irmos conviver até um dia que ninguém sabe marcar no calendário. Num horizonte de pobreza e decadência que anuncia um país em ruínas. Não as ruínas atraentes e evocativas, na fronteira do épico e do sublime, que tanto empolgavam os românticos, nem aquelas destinadas nos delírios hitlerianos a vincar a sorte dos países conquistados, mas os restos enfadonhos, sórdidos, que vêm com o desgaste e a ausência de esperança. Que não suscitam olhares benignos ou vislumbres de futuro.
Olhamos à volta e notamos que tudo começou pelas estradas e ruas, de novo sem obras, esburacadas, os indicadores dos destinos imundos, as sarjetas enegrecidas, os passeios cheios de lixo, folhas e pedregulhos trazidos pelo vento e pela chuva. Depois continuamos por dentro das próprias cidades: as casas a precisarem de obras, o estuque a esboroar-se, os cortinados gastos, os muros e os sinais dos parques de estacionamento que já não são pintados, os automóveis a ficarem velhos, cada vez mais pessoas e pessoas mais tristes a andarem a pé. Continuamos e vemos que há letras apagadas nos anúncios luminosos, candeeiros públicos sem lâmpadas, escoadouros entupidos, caixotes do lixo que não são substituídos. Lojas semivazias, fechadas ou em liquidação total. Vitrinas menos brilhantes e menos preenchidas, anunciando produtos de menor qualidade. Os hotéis e os restaurantes com menos clientes, substituídos pelas pensões baratas e pelos cafés de bairro. Come-se pior para se comer mais barato. Desliga-se o aquecimento. Já quase se não vê roupa nova, fardas refulgentes, música a saltar dos carros, filas para concertos, excursões a caminho das praias. Fora do mundo protegido das crianças, há agora menos cor e menos riso, fala-se mais baixo, os corpos movimentam-se mais devagar. Já poucos fazem planos.
Eis o cenário lúgubre e degradado dentro do qual quem decide por nós rasga hoje os seus programas e projeta as suas quimeras, anunciando no entanto que nem elas virão para já. Talvez cheguem lá para 2035, «se tudo correr bem», como sugere Cavaco. Antes disso a economia até poderá crescer, o país ficar «mais rico», mas a generalidade dos cidadãos não poderá ver tal crescimento, nem partilhar dessa riqueza, pois tal «amedrontaria os credores». Deveremos, sim, permanecer pobres para provar que somos gente de boa índole e merecemos compaixão. Mas é justamente por causa deste cenário deprimente, o de um beco sem saída, que se torna indispensável refazer os planos, rasgar horizontes. Só eles reabrirão hipóteses positivas de futuro.
Versão ampliada de uma crónica publicada no Diário As Beiras.