Após dez anos de dolorosa doença, acaba de morrer Adolfo Suárez (1932-2014), o homem que, na qualidade presidente do governo de Espanha, entre 1976 e 1981 apoiou o razoavelmente pacífico processo de transição política que conduziu o Estado espanhol do franquismo até a democracia. Foi justamente quando em 23 de Fevereiro de 1981 se encontrava numa sessão das Cortes na qual Leopoldo Calvo Sotelo iria tomar posse como seu sucessor que teve lugar uma tentativa de golpe de Estado, destinada a recolocar a direita franquista no poder e materializada então na violenta ocupação do parlamento por uma companhia da Guarda Civil chefiada pelo tenente-coronel Tejero Molina. Anatomia de um instante, do escritor Javier Cercas, é uma excelente reconstituição histórica deste episódio, invocando os acontecimentos desse dia e dessa noite para enfatizar, com flashes retrospetivos, o papel daqueles que considera terem sido os protagonistas da resistência à iniciativa golpista: Suárez, o general Gutiérrez Mellado, Santiago Carrillo, então o secretário-geral do PCE, e, do lado de fora do parlamento, o rei Juan Carlos.
O que importa neste momento é sublinhar a forma como neste livro é tratada a figura de Adolfo Suárez, que Cercas considera instrumental, pela sua coragem e firmeza perante a ameaça das armas, para naqueles momentos decisivos ter mantido a altivez e o sangue-frio, forçando os militares golpistas a uma posição defensiva. Todavia, e antes que se desenrole a teoria acrítica do «grande homem», convém relembrar que Suárez foi durante muito tempo aquilo que em Espanha se designa um señorito, jovem herdeiro abastado e católico praticante, um mau estudante de oratória fácil e simpático para as senhoras, absolutamente implacável, no entanto, nos cargos quer foi ocupando e nas medidas que foi tomando, sempre protegido pelos setores franquistas mais conservadores. Foram estes, aliás, que o levaram à chefia da Radiotelevisão Espanhola – entre 1968 e 1973, em tempo de apertada censura recorde-se – e depois à secretaria-geral da Falange espanhola, cuja orientação política não é necessário esclarecer. Terá sido a sua traição dos ideais falangistas que lhe assegurou o papel que teve na história da democracia espanhola, e ainda bem que tal aconteceu, mas que não se faça agora com que passe pelo santo de altar que jamais foi.