«Enquanto houver livros para ler sei que não terei um momento aborrecido na vida. Só isto basta para lhes dever muito.» Com esta frase, com a qual rematou uma crónica recente sobre livros e livrarias, José Pacheco Pereira lembrou uma atitude que, apesar de viver uma fase de recuo, continua a marcar profundamente a experiência coletiva e a de muitos de nós. Refiro-me à prática da leitura como momento de enriquecimento pessoal, enquanto fator de conhecimento e de prazer, mas também ao seu uso como instrumento de liberdade, devido à capacidade que oferece para treinar a imaginação, abrir possibilidades e ajudar a construir uma consciência crítica do mundo.
Abordo-a aqui na perspetiva da minha própria experiência, pois tem sido esta a atitude, e esta a paixão, que há mais de trinta anos tenho a cada dia procurado transmitir a quem me vai ouvindo em aulas e seminários de uma faculdade de humanidades. As contas que faço por alto apontam para umas 20.000 pessoas, todas elas, sempre o presumi pela escolha que haviam feito, potenciais leitores. Durante muito tempo, acredito, com um volume apreciável de bons ou de razoáveis resultados. E com alguns maus também, como é inevitável. Mas principalmente com muitos que jamais conhecerei, pois cada um desses ouvintes seguiu o seu caminho na presença das leituras que decidiu fazer ou na ausência daquelas que ignorou.
O drama presente consiste em perceber que, em função de mudanças estruturais em curso, o número dos alunos que escapam claramente a essa aproximação à arte e à aventura de ler tem vindo a aumentar. Refiro-me àqueles, atualmente em larga percentagem, que não folheiam senão péssimos apontamentos emprestados, para quem este tipo de proposta resulta incompreensível e que percorrem os seus anos de formação superior sem lerem um livro ou mesmo sem frequentarem bibliotecas. Para estes, é difícil falar dos mundos de saber que desbaratam, das viagens únicas que jamais farão, dos pedaços de vida que abandonam sem remorso ou sequer um olhar. Porque não ouvem. Porque preferem viver fechados nos seus pequenos mundos sem passado ou futuro. Porque lhes dizem todos os dias, agora até os governantes o fazem, que é uma perda de tempo interessarem-se por «coisas pouco práticas». «Ler por prazer é mal visto», dizia aliás o filósofo espanhol Fernando Savater em entrevista recente, ao falar deste recuo social da leitura, particularmente notório, e grave porque sempre foi este o lugar matricial da arte de ler, nos ambientes universitários de muitas cidades europeias.
Naturalmente, olhar esta realidade não significa a assunção de uma derrota. No plano pessoal, sempre fui paciente e nada inclinado a aceitar a inevitabilidade da desgraça. E sei que existe, entre a atual população universitária, gente que não vive essa queda sem rede no desinteresse e no obscurantismo. Ainda que, provisoriamente quero acreditar, ela possa constituir neste momento uma minoria. Mas senta-se ainda, de olhos abertos e espírito ávido, nas salas e nos anfiteatros. Reconhece, ou procura por conta própria, os infinitos mundos que se desdobram à sua frente. Nela mora a esperança, pois o futuro jamais virá da ignorância e do desinteresse. E além disso, as palavras foram de Pablo Picasso, «tudo o que podermos imaginar é real».
Versão da crónica publicada no Diário As Beiras.