À medida que nos fomos aproximando do centenário da Primeira Guerra Mundial, desdobraram-se as tentativas para explicar as suas circunstâncias à luz do presente. Todas têm coincidido em aspetos que a historiografia sempre deu como certos e incontroversos. Ninguém contesta, por exemplo, que ela começou quando poucos esperavam que pudesse ocorrer, que ganhou um extensão temporal e geográfica distante das expectativas de um confronto que se presumira curto e regional, e, acima de tudo, que introduziu um novo equilíbrio nas relações entre os Estados, perturbador da ordem internacional vigente e criador das condições para a eclosão, duas décadas depois, de um confronto ainda mais brutal. Existem, todavia, características que foi a última década de desenvolvimento do conhecimento histórico a reconhecer e destacar. Três delas justificam uma atenção especial: a guerra não opôs no terreno, pelo menos no seu início, modelos de Estado e de sociedade diametralmente opostos; desenvolveu-se num ambiente marcado por uma violência indiscriminada e sem precedentes; e emergiu no contexto de um conflito latente, aparentemente invisível, cuja gravidade não terá sido devidamente avaliada por aqueles que estavam no centro da decisão política.
Como sublinhou Niall Ferguson em A Guerra do Mundo, «quem quer que procure diferenças fundamentais de caráter nacional» que possam ter tornado inevitável o confronto, «nada irá encontrar nos registos das trincheiras». Isto é, os soldados que se defrontavam, sobretudo na Frente Ocidental, onde os combates foram mais letais, eram recrutados em sociedades muito idênticas, sendo os exércitos de ambos os lados fundamentalmente compostos de operários industriais e trabalhadores dos campos, contando com oficiais superiores de origem aristocrática e subalternos vindos da classe média, todos agrupados segundo credos e convicções muito idênticos. «De que raça somos?», perguntava Henri Barbusse no romance Le Feu, aos seus companheiros da trincheira francesa: «De todas as raças. Vimos de todos os lados», respondiam estes. Para quem alimentava o espírito belicista, era pois necessário encontrar formas de mobilizar os combatentes que não passassem apenas pela rejeição do diferente.
O profundo sentimento de camaradagem que as memórias do conflito foram sucessivamente revelando assentava na convicção profunda, estimulada pela propaganda dos Estados, de quase todos se sentirem irmanados face a uma missão que não residia na oposição a um inimigo que defendesse um modelo distinto de sociedade, mas antes na partilha de um destino histórico comum imposto, que ninguém parecia em condições de contestar. Uma coesão fundada na retórica nacionalista, que rapidamente superou a influência de algumas correntes pacifistas e libertárias haviam mantido antes do conflito, mas também nas condições em que todos tinham de lutar: o frio do inverno, o calor do verão, a humidade dos túneis subterrâneos, o fedor dos cadáveres, e «acima de tudo, o medo da morte». Apesar deste ter sido um tempo no qual a impiedade dos comandos perante a quebra da disciplina militar se acentuou, ocorreu, de facto, em ambos os campos, uma democratização do espírito de missão, determinada pela perceção de um destino comum.
De facto, as consequências dos combates e dos bombardeamentos no que respeita ao número de baixas civis e militares foram absolutamente devastadoras. Para quem conhece a história geral das guerras, é facilmente percetível que esta conteve uma dimensão de brutalidade expressa numa escala nunca antes vista. Mas mais do que o espetáculo dos números – 19 milhões de mortos, sendo soldados 7 milhões deles, para não falar do volume colossal de feridos e de estropiados –, terá sido a própria desvalorização da vida humana, associada a uma desestruturação de valores de piedade, que marcou a sua eclosão e sobretudo o seu desenvolvimento. Longe ia já o tempo da guerra romântica, quando era ainda possível pensar os conflitos bélicos como expressão exacerbada da luta por ideais que se criam historicamente necessários e onde a lógica objetiva das operações assentava mais na ocupação de pontos estratégicos do que no esmagamento massivo do adversário.
A eficácia sem precedentes do armamento (armas ligeiras e pesadas com maior cadência de tiro e capacidade de penetração, chegada da aviação e dos carros de combate), um novo tipo de combatente (que se batia em regra deitado, tão escondido quanto possível) e de chefe (mais apostado na defesa que no ataque, devido à barragem de fogo da artilharia), a extensão dos fenómenos de medo, das perturbações psíquicas e dos atos de deserção (parcialmente compensados pela maior presença no terreno de oficiais de escalão intermédio, numa relação paternal com os «seus homens»), puseram um fim efetivo ao modo como as batalhas eram até então travadas, determinando novos processos de extermínio e, ao mesmo tempo, de distanciamento físico do inimigo. O combate de trincheira, associado ao uso massivo de armas químicas, criou um cenário novo, no qual todos os antigos conceitos de honra militar tinham deixado de fazer qualquer sentido. A banalização e a brutalização da violência, de um tão desnecessário quanto imenso banho de sangue, com o alastramento de atitudes de indiferença perante a crueldade, evidenciadas em particular pelos veteranos, e a manutenção por muitos anos, mesmo depois de obtida a paz, de um sentimento de ódio total diante do inimigo, insensível ao facto de serem civis ou combatentes aqueles que se encontravam do outro lado, tem sido recorrentemente reconhecida. Todos eram seres odiosos, cujos crimes, merecedores do maior dos castigos, tinham a cor da sua bandeira.
Nos últimos anos, tem entretanto sido prestada uma maior atenção a algumas das condições materiais e políticas que determinaram a eclosão e o curso da Primeira Guerra Mundial, sendo nesta dimensão que a tendência para estabelecer comparações com o presente mais tem tentado os historiadores. Desde logo através da perceção otimista, nos anos que antecederam a guerra, tal como na época que ainda cruzamos, de se viver uma revolução tecnológica cujos resultados apenas poderiam ser benévolos. Norman Stone fala-nos de um «salto quântico» sem precedentes, referindo-se a uma viragem que rapidamente introduzira num mundo de «cavalos e carroças» invenções tão perturbantes quanto o foram os telefones, os aviões e os automóveis. Ao mesmo tempo, esse era um tempo no qual as ideologias não detinham ainda um papel fulcral na representação e na orientação dos destinos do mundo, deixando a maioria dos cidadãos ao dispor das decisões, por vezes erráticas, daqueles que os dirigiam.
O mais significativo, porém, terá sido a forma como estes – reis, imperadores, ministros dos negócios estrangeiros, embaixadores ou comandantes militares – foram incapazes de interpretar os sinais de violência que se avolumavam, alimentando a falsa noção de que, pelo menos na Europa, seria de todo impossível a eclosão de uma guerra em larga escala. Recentemente, foi o australiano Christopher Clark, professor de História da Europa em Cambridge, quem mais abertamente referiu a importância de uma tal dose de indiferença diante do perigo, ou pelo menos de inaptidão política, sugerindo a possibilidade de, em condições semelhantes, o mundo atual seguir idêntico destino. Em The Sleepwalkers – How Europe Went to War in 1914, saído já em 2013, os «sonâmbulos» que refere são aqueles que, «cegos perante a realidade do horror em que estavam prestes a lançar o mundo», preocupados sobretudo com a resolução dos seus problemas mais imediatos, escancararam sem remissão as portas da guerra.
A presunção de uma aparente inevitabilidade, sugerida também por Clark, de um novo conflito determinado pela incapacidade dos dirigentes da zona euro, pressionados pelas ordens que chegam de Berlim e Pequim, e mais preocupados com os interesses nacionais do que com a conservação da paz e a colaboração entre Estados, para vislumbrar o potencial de conflito que se adensa no horizonte, tem, naturalmente, os seus detratores. Mas a ideia, por ele adiantada, segunda a qual vivemos hoje uma «paz podre», análoga àquela que antecedeu a Primeira Guerra Mundial e mergulhada em idêntica dose de inconsciência, não deixa de ser assustadoramente sedutora. Só o futuro revelará se terá sido ou não premonitória. Se alguém um dia escreverá, relembrando os alvores da Guerra, como o fez em 1936 a escritora, crítica e jornalista Rebecca West em carta enviada do Grande Hotel de Sarajevo para o marido: «jamais serei capaz de entender o que aconteceu».
Publicado originalmente na revista LER de Março de 2014.