A crise global tem suscitado na Europa não apenas o questionamento dos modelos de sociedade construídos sobre as liberdades políticas e o pluralismo ideológico, mas igualmente o do próprio valor da democracia como fonte da legitimidade da governação. Fora do espaço protegido, fechado sobre si próprio, dos aparelhos partidários que têm rodado na gestão dos diversos poderes, começa a ser praticamente consensual que o modelo da democracia representativa, tal como este tem vindo a funcionar, se mostra insuficiente para administrar com eficácia a coisa pública e para conservar a confiança dos cidadãos. Ao mesmo tempo, revela-se cada vez mais incapaz de mobilizá-los para as tarefas de regeneração das sociedades nas quais a perda de direitos e a instalação do pessimismo dominam pesadamente a paisagem social.
Todos os dias deparamos com comentários de pessoas comuns, artigos de opinião ou resultados de sondagens nos quais a insatisfação se traduz num crescente desdém pela política e pelos políticos, dele resultando um desinteresse pela participação que apenas piora as coisas. Sem a intervenção efetiva dos cidadãos, reduzida aos episódios eleitorais, eles próprios tantas vezes condicionados pelas dinâmicas clientelares, fica escancarada a via da impunidade e da desresponsabilização, caminho certo para a emergência de projetos salvíficos, ancorados em figuras providenciais ou em partidos que se consideram detentores da razão. Uns e outros convencidos de possuírem o exclusivo de um encontro com a História. Naturalmente envolvidos numa retórica de populismo e de revanchismo que potencia os fatores de descontentamento impostos pelo empobrecimento, pelo desemprego, pelo recuo das políticas sociais, pela ausência de justiça, pelo acentuar da desigualdade, e que associa todos estes males à própria democracia, acalentam o caldo de cultura do qual – repetindo uma experiência já vivida na primeira metade do último século – assomam os extremismos apresentados como a solução infalível, a mais rápida e a mais segura.
É neste contexto que podemos agora assistir, do Atlântico aos Urais, em França ou na Itália, na Ucrânia ou na Rússia, a uma ressurgência dos setores que à esquerda e à direita – à medida que a reescrita da História faz tábua rasa da memória e se consolida em nome de preocupações mais urgentes – se manifestam com cada vez menor pudor pelo uso da violência, pela exclusão das minorias e pelo retorno a experiências de engenharia social e de pensamento único. Cientes de que aos olhos de um grande número de desiludidos as suas propostas se tornaram de novo aceitáveis, compreensíveis, talvez menos danosas do que durante anos as desenharam. Como experiências portadoras de uma dinâmica autoritária, da qual se espera a produção de uma ordem nova e admirável.
Desmemoriadas, as sociedades consideram então que «nada pode ser pior que isto» e deixam-se embalar pelo canto de quem, do lado mais extremo, agressivo e inflexível da direita ou da esquerda, regressando a um cândido Hitler ou a um Estaline reumanizado – sim, alimentados pela ignorância ou pelo rancor eles estão a ressurgir como exemplos –, parece apontar para alguma coisa pela qual vale a pena lutar. Reconduzindo-nos a essa «era dos extremos», feita de guerra, medo, miséria e deportação, da qual falava o historiador Eric Hobsbawm. Fazendo-nos aproximar, quase sem que nos apercebamos, e com a conivência de quem levou a democracia a transformar-se na sua própria caricatura, desse tempo ao qual Camus se referia como o do «crime que se enfeita com os despojos da inocência».
Crónica publicada no Diário As Beiras.