A primeira parte deste artigo pode ser encontrada aqui.
A crise do Bloco de Esquerda existe. Mas é bastante mais saudável dá-la como certa e funda, olhá-la de frente, do que fugir a debatê-la publicamente, fazendo de conta que é irrelevante e momentânea, resultado fortuito de desfigurações impostas pelos seus adversários políticos naturais ou de erradas escolhas pessoais nascidas no seu interior. Na verdade, a origem desta bem visível crise é complexa e prende-se com circunstâncias tão diferentes como a continuada ambivalência do projeto inicial do Bloco, uma prolongada indefinição programática e uma notória dificuldade de adaptação a alguns dos desafios impostos pelas transformações políticas e sociais despoletadas pela crise financeira de 2010. O pior que os seus dirigentes podem fazer – a si próprios e aos cidadãos que nele têm depositado uma parte das suas esperanças – é negar esta situação diante dos microfones, ensaiando uma fuga para a frente e apontando o dedo em riste a quem diverge.
Olhemos algumas das circunstâncias. Em primeiro lugar, a fundação do Bloco em 1999 partiu, como é sabido, da intenção positiva de juntar partidos e tendências situados à esquerda do PCP, que durante décadas se haviam ignorado ou mesmo combatido. A missão foi realizada com êxito, destacando os fatores de aproximação, mas fê-lo varrendo para debaixo do tapete as divergências de cultura política existentes, algumas delas profundas, o que jamais permitiu a sua completa superação. Em segundo lugar, a construção do partido articulou-se principalmente, quase em exclusivo, com as exigências dos calendários eleitorais, da atividade parlamentar e da intervenção militante numa política de causas e de protesto, nunca tendo sido construído um projeto político sólido, dotado de ideologia e em condições de orientar os desafios políticos envolvendo a implantação social e uma intervenção objetiva na área do poder. Em terceiro lugar, justamente devido ao facto de o partido ter sido projetado sobretudo por uma atitude de resistência e de defesa de causas, sem dúvida importante e muito necessária, mas insuficiente, a sua direção, e cumulativamente grande parte dos seus militantes, viu-se incapacitado para dar uma resposta coerente à imperiosa necessidade de construir uma alternativa real diante da política de terra queimada do atual governo.
Deixo de lado os primeiros dois aspetos para me concentrar no último, aquele que mais diretamente se relaciona com a queda eleitoral do Bloco e com as divergências que o têm atravessado, levando à acentuação de algumas clivagens, à saída ou ao afastamento de militantes, e principalmente à desmobilização e ao escape para outras paragens eleitorais de um grande número de simpatizantes e de eleitores. Neste plano, têm sido a escolha da política de alianças e a gestão da relação com o poder de Estado a constituir o eixo dos desacordos e das ambiguidades.
Os argumentos não são novos e por isso limito-me a enunciar aquilo que me parece serem evidências. Por detrás um duplo cenário, sem o qual tudo o que possa ser dito resulta incompreensível: 1) nas atuais circunstâncias de um governo apostado em empobrecer a generalidade dos cidadãos e em destruir até ao último grão de pó o Estado social, toda a intervenção política de caráter exclusivamente protestativo, que exclua a construção objetiva de uma alternativa de governo, remetendo a solução para um futuro que ninguém pode honestamente prever, que não considere a construção imediata de uma alternativa, apenas pode contribuir para deixar em suspenso a vida de quem anseia por uma saída; 2) a construção de uma alternativa de governo pode ser realizada com uma ou diversas forças políticas, mas, nas circunstâncias atuais da distribuição do eleitorado, é totalmente impossível sem a participação do Partido Socialista, seja qual for a forma que, a curto prazo, este venha a tomar.
Coloca-se pois, perante este panorama, a necessidade de olhar de frente para o PS, de com ele dialogar sobre o futuro imediato, mesmo reconhecendo as suas enormes limitações na gestão da democracia, os defeitos estruturais que desde há muito integra, o clientelismo que o tem minado, a duplicidade do comportamento político da maioria dos seus dirigentes, as fronteiras de uma intervenção pública que jamais porá em causa os princípios fundamentais do funcionamento do sistema capitalista, as regras da economia de mercado e o cruzamento de interesses contraditórios que dá um rosto à Europa dos Estados. Mas não pode ser indiferente à «esquerda da esquerda», que seja este partido ou a direita ultramontana, a governar o país. Considerar que «é tudo igual», ou dizer que assim não é mas agir como se assim fosse, apenas conduz, como já tem sido dito por alguns dos que se têm afastado do Bloco, a uma incapacitação do PS para fugir dos poderosos braços da direita.
Tal não implica, porém, qualquer forma de adesão às propostas do PS. A esquerda, que o Bloco integra, deve definir as suas próprias propostas, explicá-las aos cidadãos, bater-se por elas no terreno eleitoral, embora elas valham justamente porque são próprias, autónomas. Tal como já foi historicamente demonstrado, é uma pura e perigosa ficção esperar por essa mítica «unidade da esquerda» que em parte alguma existiu (ressalvando talvez algumas experiências da antiga «Europa do Leste» que tiveram o fim triste que se conhece). A esquerda é realmente múltipla: existem componentes suas que são inconciliáveis, existem setores com tendências autoritárias, existem setores profundamente libertários, existem diferentes modelos vocacionados para a imaginação de modelos de sociedade futura muito diversos; e por isso mesmo se deve manter a diferença dos rostos e a pluralidade das propostas. Mas tal não é um mal, antes pelo contrário, pois ao mesmo tempo é possível, particularmente num contexto agudamente crítico como o presente, trabalhar para uma convergência programática de interesses destinada a evitar essa catástrofe para a qual a direita nos empurrou, e a desenhar as condições de governabilidade e de recuperação – económica, social, até psicológica – sem a qual o futuro que nos espera terá cada vez mais a cor negra da miséria ou a tonalidade baça do autoritarismo.
O que se prevê para um futuro próximo é a apresentação ao eleitorado de diversas propostas no campo da esquerda. Propostas sem qualquer intenção de unir, mas sim de aproximar no que é essencial. Plurais como nunca, e abertas à mobilização e ao debate dos programas e dos compromissos que envolvem o jogo eleitoral. O surgimento no terreno de forças como o Fórum Manifesto, o que resta do Manifesto 3D e do Congresso Democrático das Alternativas, o Livre ou o PAN só é mau se não for possível um entendimento na diversidade. Mas neste jogo o Bloco de Esquerda terá um papel a desempenhar. Resta saber se alinhado no lado dos que se centram no diagnóstico, ou na imaginação de uma terapia, mas ignoram a cura, diferida para uns quaisquer «amanhãs que cantam». Ou no daqueles que procurarão sempre, independentemente das suas convicções – levadas quando necessário também para a rua e para o protesto –, encontrar em comum um compromisso imediato para minimizar a desgraça e retomar a expectativa de uma vida melhor.