De cada vez que se inicia o ano letivo regressa a polémica sobre as praxes. Acontece de forma mais intensa em Coimbra, dada a relação particular da cidade e da sua universidade com esses ritos. Raramente tem algo de estimulante e construtivo, limitando-se quase sempre a uma rude e estéril troca de palavras. Os campos afastam-se abertamente: de um lado, os que se opõem de todo às suas formas, em particular aquelas que têm ganho corpo nos últimos tempos, considerando-as obsoletas e negativas; do outro, os que as defendem de um modo irredutível como fator de inclusão e característica identitária. Entre os dois polos um terreno vasto, povoado pelos que reconhecem as antigas praxes, sem se aperceberem de como nos últimos anos estas mudaram de qualidade, por uma população em larga medida indiferente ou avessa aos seus momentos, e por um país que as olha como para uma encenação que mistura episódios de tragédia e instantes de comédia.
Podemos no entanto deslocar o debate para um campo que não nos força a escolher de qual dos lados está a razão mas pode esclarecer-nos sobre os seus contextos. Proponho um rápido olhar sobre dois aspetos: as circunstâncias históricas e as particularidades sociológicas e culturais que permitem pensar a própria cidade. Do primeiro é fácil definir alguns contornos: é verdade que as praxes estudantis fazem parte da vivência multissecular de Coimbra e da sua universidade, mas sempre estiveram ligadas, e por isso têm vivido em perpétua metamorfose, a contextos diversos, que jamais instituíram uma tradição única, supostamente exclusiva, antes projetando convicções e atitudes coletivas que nunca foram de sentido único. Entre estas conta-se, aliás, uma linha de resistência à própria ideia de tradição como um elogio do passado, que pelo menos desde os inícios do século XIX sempre viu a academia coimbrã como espaço de edificação de uma vivência informada, crítica e democrática do país e do mundo, não como território de vã estúrdia movida a álcool e de reprodução à escala micro de uma sociedade conformista e hierarquizada.
Por outro lado, a representação de Coimbra que os adeptos das praxes declaram assegurar é verdadeira mas é muito parcial. Existe de facto um setor da população e da comunidade estudantil que as vê, e se vê a si mesmo, como uma espécie de museu regional e de escola de tradição, insistindo em divulgar uma conceção da cidade concebida como fortaleza. Uma fortaleza capaz de resistir aos desafios imprevisíveis e aos ventos incertos que atravessam o mundo de hoje ao recorrer a um trabalho de persistente reverência perante o passado. Ele mesmo tantas vezes efabulado. Mas existe também outra cidade, que a primeira não vê e não quer ver, que olha para lá da colina nuclear e deseja abrir-se com rasgo aos desafios do cosmopolitismo, da vida contemporânea e de uma existência voltada para o futuro. Uma Coimbra rejeita a outra, embora ambas percorram as mesmas vias, habitem os mesmos bairros e se molhem com a mesma chuva. A aguda discordância sobre o papel das praxes passa por este conflito latente entre diferentes modos de conceber a cidade.
Crónica publicada no Diário As Beiras (versão revista)