Não acontece apenas com o Holocausto: existe também um negacionismo do Gulag. A década e meia que se seguiu à queda do Muro de Berlim correspondeu a um período de expansão de trabalhos sobre a dimensão e o impacto da repressão política e social na União Soviética durante o longo período em que Estaline foi impondo a sua brutal ditadura. Estudaram-se em particular a formação e o desenvolvimento do Gulag, o tentacular e imenso sistema de campos, bem como as decisões de natureza genocida, impostas por manobras de engenharia social que envolveram muitos milhões de pessoas, e ainda os assassinatos em massa perpetrados durante o Grande Terror de 1936-1938. Nos últimos anos, porém, algo tem vindo a mudar neste processo de reconhecimento. E a mudar num sentido preocupante, com a emergência pública de vozes que se esforçam por negar ou por justificar aquilo que aconteceu.
Naturalmente de valia diversa, a maior parte desses estudos foi levada a cabo por historiadores profissionais, cientistas políticos e jornalistas reconhecidos de várias nacionalidades, que puderam ter acesso aos arquivos da antiga URSS, outrora sonegados ao conhecimento dos cidadãos e à investigação, enquanto no interior da Rússia a Associação Memorial, fundada em 1989, se esforçava por desenvolver um trabalho árduo mas persistente e com resultados palpáveis de recuperação da memória das vítimas e de inventário da pós-memória dos seus descendentes.
A massa documental que foi sendo publicada sobre o tema – tendo parte dela começado a ser preparada ainda durante o período da perestroika – é numerosa, diversificada e em regra sustentada do ponto de vista científico. Para além de estudos históricos muito detalhados – como os de Orlando Figes, Sheila Fitzpatrick, Alexander Yakolev, Simon Sebag Montefiore, Robert Conquest, Anne Applebaum, Dmitri Volkogonov, Paul Hollander, Tomasz Kizny ou Karl Schlögel, para mencionar apenas alguns autores – foram tornadas públicas inúmeras cartas pessoais, diários, fotografias, entrevistas a antigos prisioneiros, a guardas e até a membros da polícia política. Foram também recolhidos e publicados documentos oficiais, alguns deles da responsabilidade de figuras importantes do antigo regime e datados do período que se seguiu de imediato à morte de Estaline, em 1953, que reconheceram e testemunharam a dimensão e as ramificações do pesadelo. Finalmente, foram saindo obras de ficção que resultaram de experiências vividas, sendo talvez a mais notável os póstumos Contos de Kolyma, de Varlam Shalamov, antigo prisioneiro que passou décadas em alguns dos piores campos siberianos e viveu para evocar a experiência.
Todavia, este volume de informação tem vindo a ser relegado para um plano secundário pelas atuais autoridades russas, implicadas numa tentativa de restauração da ideia de grandeza imperial que recoloca Estaline no lugar confortável de dirigente que fez «o que precisava ser feito». No interior da Rússia, muitos nostálgicos do antigo regime insistem mesmo em recuperá-lo como herói. Ao mesmo tempo, no ocidente, as batalhas politicas da esquerda que ainda se reivindica da herança da URSS, ou daquela que insiste em não revisitar o lado negro do seu passado, apoiada numa chocante ausência de informação e de memória, particularmente notória entre muitos jovens militantes, tem ajudado a recriar o «mito de Estaline», ou, pelo menos, a tomar como irrelevante e resultado de meros atos de propaganda «da direita», os esforços de quem tem procurado observar o passado com imparcialidade e sentido de justiça. O «dever de memória» tantas vezes invocado, e muito justamente, para sublinhar os crimes de Hitler ou de Franco e redimir do esquecimento os que a eles foram sujeitos, tem sido, neste caso, deliberadamente ignorado.
Por isso uma obra como O Meteorologista, do escritor francês Olivier Rolin, que acaba de ser traduzida pela Sextante Editora, emerge com particular importância. Não apenas porque surge como um desbloqueador da memória, mas também porque evoca, de forma particularmente enfática, um dos maiores dramas vividos na URSS de Estaline: a perseguição aleatória, impiedosa e injustificada de pessoas, muitas delas fiéis militantes comunistas, determinada por circunstâncias associadas à luta pelo poder, pela imposição de uma planificação dogmática e cega ou «apenas» como resultado da evolução paranoica do poder de Estado, autorrepresentado como libertador ao mesmo tempo que se mostrava capaz de engolir muitos dos seus melhores filhos.
Este livro não é um romance, mas um produto híbrido, talvez mais próximo da reportagem ou do testemunho do que da ficção, resultante de uma investigação histórica no terreno levada a cabo por Rolin. O protagonista é mais uma vítima que um herói. Ou melhor, é um homem comum, que de facto pouco se elevara acima da mediocridade mas que a memória vivida do horror transforma aqui em herói. Alexei Feodosievitch Vangengheim, nascido em 1881 em Krapivno, uma aldeia da Ucrânia, era «um homem que se interessava pelas nuvens e fazia desenhos para a sua filha» apanhado, por duas vezes, em circunstâncias que o empurraram para o abismo no qual viria a desaparecer até ser recuperado para esta obra pelo escritor francês.
A primeira dessas circunstâncias corresponde à prisão como «sabotador», em resultado de uma denúncia anónima apresentada por alguém que se sentia despeitado pelo seu sucesso como meteorologista e que presumivelmente desejava apoderar-se do posto burocrático que Vangengheim ocupava. A segunda circunstância, vivida após uma estadia no campo das ilhas Solovki, onde a partir de 1923 passara a funcionar o primeiro campo do Gulag, ocorreu quando, no contexto do Grande Terror, uma ordem assinada por Nikolai Yezhov – o anão assassino que depois de Guenrikh Iagoda ter sido executado, chefiou o NKVD entre Setembro de 1936 e Novembro de 1938, até ele próprio ser também executado e substituído por Beria, por seu vez fuzilado em 53 – impôs um contingente fixo de «contrarrevolucionários e sabotadores» a abater. A ordem escrita apontava para um total de 750.000 prisioneiros, que cada campo, mediante uma quota rigorosamente fixada pelo 8º departamento (de «contabilidade e estatística») da polícia política, deveria fuzilar sem contemporizações com um tiro na nuca e em lugar mantido secreto. Uma média de 1.600 execuções por dia durante os últimos cinco meses de 1937. A de Alexei Feodosievitch seria uma delas.
Mas enquanto sobreviveu no campo de Solovki, o seu estado foi o de total incredulidade. Pior do que o sentir-se alvo da injustiça, do isolamento, do afastamento da família que tanto amava, do trabalho esgotante, da fome, da proscrição, pior do que tudo isso foi não ser capaz de aceitar, como aconteceu com tantos outros, o ser vítima do sistema no qual acreditava e pelo qual trabalhara entusiasticamente, sem qualquer dúvida ou desânimo. «Se Estaline soubesse… Não consigo conciliar na minha cabeça o bolchevismo e a falta absoluta de sentido (…) Rompi com a minha classe de origem há trinta e cinco anos, dei todas as minhas forças e todo o meu conhecimento à classe operária. Luto para manter a minha força de ânimo, não quero perder a confiança no Partido e no poder soviético. Não deixo nunca de esperar que a razão acabe por triunfar, isso é muito mais importante que o meu destino pessoal», escreverá numa das cartas à mulher que foi possível recuperar.
Olivier Rolin deixa a dada altura uma dúvida sobre o destino deste pedaço de História se esta pudesse ter seguido outro caminho. «Ficamos a perguntar-nos o que teria acontecido se a loucura de Estaline (…) não tivesse substituído, como mecanismo da vida soviética, o entusiasmo pelo horror.» Mas o Gulag de facto existiu, não pode ser negado, os crimes do estalinismo não foram «erros menores», desculpabilizáveis, e muito menos foram meras «invenções do capitalismo», e este livro magnífico e bastante perturbante – muito bem escrito, aliás, como acontece com todos os de Rolin – é uma excelente introdução ao seu reconhecimento. Lê-lo e recomendá-lo constitui um «dever de memória». E pode também funcionar como uma precaução.
Versão ampliada de artigo publicado no Diário As Beiras.